Neymar precisa ser mais como Ronaldinho em campo e menos fora
Julio Gomes
19/01/2018 04h00
Este post é sobre os dois brasileiros da semana. Dois dos nossos maiores jogadores, que dominaram o noticiário por motivos diferentes. Mas, antes de chegar em Neymar e Ronaldinho, vou contar uma historinha. Vocês vão entender.
Março de 97. Eu tinha 17 anos, estava no primeiro ano de faculdade e meu time era um timaço. A Lusa era vigente vice-campeã brasileira, candidata a tudo. Em uma tarde qualquer, enfrentou o Kaburé, de Tocantins, pela Copa do Brasil. Pouca gente foi ao Canindé, horário comercial, dia de semana, já sabem. Eu estava lá. A Portuguesa ganhava por 7 a 0 quando, nos minutos finais, o juiz marcou um pênalti.
Os torcedores presentes começaram a gritar o nome de Capitão. Para quem não sabe ou não lembra, Capitão, um volante de alguma classe e muito esforço, jogou por quase 10 anos no clube. Com mais de 500 jogos, foi quem mais vezes vestiu a camisa da Portuguesa (a história dele está bem contada aqui). Mas fez pouquíssimos gols. Portanto, com 7 a 0 no placar e pênalti, era a hora e a vez de Capitão.
Mas apareceu um estraga-prazeres. O goleiro Clemer. Que era ídolo e tal, mas nada nem perto de Capitão. Com cara amarrada, ele pegou a bola das mãos de Capitão, cobrou sob vaias, não comemorou e voltou para o gol. Foi xingado até o fim do jogo. Já deviam ter combinado algo assim, de que se o jogo estivesse resolvido Clemer iria bater o pênalti. Só não contavam com uma torcida espirituosa e grata.
Eu não sei se a torcida do Paris Saint-Germain tem a mesma espirituosidade. E nem se é tão grata assim a Cavani.
Vamos lembrar. O PSG vencia o Dijon por 7 a 0 na Ligue 1, quarta-feira. Neymar só não fez chover no jogo. Já havia marcado três gols, um que foi uma pintura, lembrando os tempos de Brasil, driblando todo mundo. Sai um pênalti para o PSG. Se convertesse, Cavani se tornaria o maior artilheiro da história do clube. A torcida grita o nome do uruguaio. Neymar pega a bola, bate e faz o quarto dele, o 8 a 0. É vaiado. Fica bravo. Não vai celebrar o resultado com a torcida, como os outros jogadores.
Eu não sei se Neymar sabia do recorde de Cavani ou percebeu o ruído da arquibancada. Talvez até não. Não acho que ele seja o pior ser humano do mundo por ter batido o pênalti.
Mas me parece claro que falta a Neymar uma conexão com a arquibancada. E falta o sorriso no rosto que tinha Ronaldinho – chegamos a este monstro sagrado, a quem não posso deixar de prestar homenagem na semana em que se aposentou de vez (na prática, se aposentou faz tempo).
As homenagens a Ronaldinho no mundo inteiro deveriam servir de exemplo para muitos jogadores marrentos por aí. Ronaldinho foi, em 2004 e 2005, disparado o maior do mundo. Mas não só isso. Ele foi pura mágica em campo. Aquele sorriso aberto em todos os momentos, na vitória ou na derrota, no golaço ou na pancada, contagiou milhões de pessoas. E contagiou porque era genuíno, todos conseguiam ver isso. Era impossível não gostar de Ronaldinho. Impossível.
Ronaldinho foi muito mais do que um grande jogador. Ronaldinho é desses caras que fazem o brasileiro ser bem recebido em qualquer lugar do mundo. Que fazem com que a gente tenha o melhor cartão de visitas global, em qualquer país, em qualquer circunstância. Ele é o símbolo da alegria do nosso povo (ou suposta alegria, não precisamos dividir nossos podres).
De quantas roubadas eu já não saí mundo afora fazendo o hang-loose e dizendo "Roooooonalldinho"!
Mas, fora de campo, ele teve uma carreira muito curta e prejudicada. Eu nunca convivi com a família Assis. Mas era nítido que Ronaldinho bancava muita gente para morar com ele (primos, parças, festas…). E Assis, o irmão mais velho, uma espécie de pai substituto após a tragédia familiar, era quem tocava os negócios.
Ex-jogador, que não passou nem perto de ser o que foi o irmão, parecia querer fazer valer o talento em forma de grandes contratos. Sempre muito duro com os clubes, sempre forçando renovações, querendo mais, mais e mais. O auge foi o patético leilão instigado entre Flamengo, Palmeiras e Grêmio em 2011. Mas tiveram também as próprias saídas de Grêmio, PSG e Barça.
Se há algum arranhão na imagem de Ronaldinho é este. Festeiro demais, com a carreira influenciada por um irmão que pensa em dinheiro demais.
Fora do campo, o paralelo com Neymar é nítido. Carreira levada pelo pai, ex-jogador, que parece querer ganhar com o filho todo o dinheiro possível para esta e mais umas 30 vidas. Banca um mundo de amigos, que leva para lá e para cá. Muitas distrações. E o tempo todo no noticiário as especulações sobre novos contratos, possíveis saídas, etc. Coisas que não são inventadas pela imprensa. Essas informações chegam, são vazadas, até como forma de pressionar os clubes e agentes envolvidos.
Seria ótimo se a carreira de Neymar, já marcada pela negociação picareta que o tirou do Santos e por outra saída traumática (do Barcelona), passasse a ser menos atrelada a tantas especulações envolvendo contratos, transferências, impostos. Dinheiro, em resumo.
As pessoas detestam gente gananciosa. E Ronaldinho só superou essa imagem porque, em campo, o cara era a simpatia ambulante.
Uma simpatia que Neymar não tem. Seus sorrisos no terreno de jogo são invariavelmente irônicos ou pedantes. A atitude diante dos adversários é de humilhação.
Existe uma certa sabedoria popular que vem das arquibancadas. Uma sabedoria que muitas vezes escapa do radar dos jogadores, do staff deles e mesmo de jornalistas. Um senso comum ali, um feeling.
A sabedoria que fez torcedores do Real Madrid aplaudirem Ronaldinho Gaúcho no Bernabéu. A sabedoria que fez o Brasil inteiro (menos os cruzeirenses) ficar feliz quando o cara levantou uma Libertadores, já no fim da carreira. A sabedoria de quem percebe que há algo especial naquele dentuço de Porto Alegre. A sabedoria de quem, como eu já disse, sabe que aquela felicidade em campo é genuína. E que o jogo tem que ser aquilo, nada mais, nada menos. O jogo tem de trazer alegria a quem joga e a quem vê, não sofrimento ou irritação.
É óbvio que alguns torcedores do PSG devem estar ficando de saco cheio das notícias de uma possível insatisfação de Neymar no clube, de uma possível saída para o Real Madrid, de uma possível briga por holofotes no vestiário. Começam a ficar bodeados do craque. Começam a ver quatro gols com desdém, não com entusiasmo e paixão.
Clemer, 20 anos atrás, não teve a perspicácia de entender que aquele era o momento de deixar Capitão bater o pênalti. A perspicácia que Neymar não mostra nunca, porque parece acreditar que o mundo gira mesmo em torno dele. Como devem ter falado e ainda falam em seus ouvidos.
O garoto é uma pilha de nervos ambulante. Vive agindo com uma chata e pequena mentalidade de "o mundo está contra mim".
Imaginem Ronaldinho neste 7 a 0? Iria pegar a bola, sair rindo com seus dentões e oferecer até para o gandula bater o pênalti.
Neymar precisa ser mais como Ronaldinho em campo. Mais genuíno, mais alegre. Resgatar a felicidade leve que ele deve ter sentido um dia, quando jogava bola na praia de Santos.
Menos cala-bocas. Mais abraços grátis. Na história, você já está. Agora trate de entrar nos corações também. Relaxa, Neymar!
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Sobre o Autor
Julio Gomes é jornalista esportivo desde que nasceu. Mas ganha para isso desde 1998, quando começou a carreira no UOL, onde foi editor de Esporte e trabalhou até 2003. Viveu por mais de 5 anos na Europa - a maior parte do tempo em Madrid, mas também em Londres, Paris e Lisboa. Neste período, estudou, foi correspondente da TV e Rádio Bandeirantes e comentarista do Canal+ espanhol, entre outras publicações europeias. Após a volta para a terrinha natal, foi editor-chefe de mídias digitais e comentarista da ESPN e também editor-chefe da BBC Brasil. Já cobriu cinco Copas do Mundo e, desde 2013, está de volta à primeira das casas.
Sobre o Blog
Este blog fala (muito) de futebol, mas também se aventura em outros esportes e gosta de divagar sobre a vida em nossa e outras sociedades.