Nunca conseguirei aplaudir soco na cara
Julio Gomes
27/04/2017 12h31
Uau, a turma gosta de uma pancadaria, né? Nada como uma briga para unir time e torcida. Como critiquei Felipe Melo (também critiquei o Peñarol, jogadores, estádio, etc, mas isso não importa) após o quebra pau de Montevidéu, virei alvo no Twitter.
Essencialmente, aparecem para te xingar pessoas que colocam o nome do time substituindo ou como adendo ao próprio nome e que em sua foto de perfil colocam jogadores, estádios, escudo. Ou seja, time à frente da própria pessoa, da própria personalidade. Esses não me decepcionaram. São apenas acometidos de uma doença chamado fanatismo cego, acham que são a salvação do futebol, quando na verdade são o túmulo dele. Eles aparecerão por aqui nos comentários deste post. Não me decepcionam, apenas atendem (as baixas) expectativas.
O que me decepcionou foi tanta gente que respeito achar legítimo e normal o par de socos desferidos por Felipe Melo.
Antes de tentar entender o que aconteceu, eu lanço uma pergunta. E se Felipe Melo tivesse acertado em cheio o rosto do jogador uruguaio? Por força e velocidade, o rapaz possivelmente teria ficado estatelado ali no chão, sangrando com nariz quebrado. Teria sido melhor ou pior? Felipe Melo possivelmente estaria preso no Uruguai. Menos mal que não acertou.
Vamos tentar traçar uma cronologia dos fatos.
Impossível não falar da infeliz declaração do "tapa na cara de uruguaio". Eu entendi perfeitamente, Felipe Melo usou uma figura de linguagem. Ele não estava sendo literal e inclusive se desculpou por isso depois. Mas é lógico que aquilo lá ficou anotado.
Depois, tivemos o jogo do Allianz Parque, com aqueles acréscimos eternos, a tensão, o antijogo do Peñarol que enervou time e torcida palmeirenses. Tivemos também Felipe Melo falando que foi chamado de "macaco".
Eu sou radical quando o assunto é racismo. E sou também um pacifista radical. No meu ponto de vista, tudo, absolutamente TUDO pode ser resolvido sem agressão física. Obviamente, o ser humano não pensa assim. Não à toa, a história é contada através de guerras e basta sair em um sábado à noite para ver a quantidade de brigas nas ruas – em bares, discotecas, independente de lugar, classe social, cor, etc.
Então, se Felipe Melo foi chamado de macaco, deveria ter imediatamente parado o jogo. E seu agressor deveria estar enjaulado, que é o que ele merece.
A partida de quarta à noite não foi marcada pela violência durante 90 minutos. O Palmeiras estava mal armado no primeiro tempo, levou 2 a 0, Eduardo Baptista corrigiu no intervalo, voltou, virou para 3 a 2 de forma espetacular, ponto final. O Corinthians x São Paulo de domingo foi muito mais violento em campo.
Apito final, e aí começa a confusão.
Juntando tudo o que eu vi de imagens, em vídeo e também fotos, com algum toque de dedução (esse é o típico caso de interpretação, e cada um tem a sua), o que eu percebi.
Quando acaba o jogo, três ou quatro jogadores do Peñarol se dirigem a Felipe Melo, que está de braços levantados. Se Felipe Melo falou algo ao acabar o jogo ou se esses caras já tinham planejado fazer isso, só eles sabem. Tendo a considerar a segunda opção, por tudo o que tinha ocorrido antes, declarações, etc.
É aquela tirada de satisfações, que gera aquele empurra empurra de sempre. Quantas vezes não vimos isso no futebol? Fernando Prass se antecipa e já corre para defender seu companheiro.
Minha opinião: todas as perguntas na linha "o que você faria no lugar dele" se referem ao momento em que ele está sendo perseguido em campo. Eu transfiro a pergunta para este momento. O que eu faria no lugar dele?
Me mandaria, oras. Sai fora. Ele estava a poucos metros do túnel do vestiário. Os portões do vestiário foram abertos assim que o juiz apitou o final do jogo, como pode ser visto no vídeo com a imagem ampla ao final do jogo.
Se houve "emboscada", como muitos disseram, ela só foi pensada depois. Porque, repito, assim que acaba o jogo, os portões dos vestiários são abertos.
Neste momento inicial da confusão, bastaria Felipe Melo dar um pique e IR EMBORA. Todos teriam feito o mesmo junto com ele, end of story.
Mas não, ele não vai embora. O rapaz tem histórico, não é mesmo? Basta ver suas declarações no passado e no presente. Felipe Melo faz questão de dizer que, se preciso for, para a porrada irá. Foi assim em todos os clubes por onde passou. E assim ele ganha torcidas. Porque torcidas e fanáticos adoram porrada.
Não discuto o futebol de Felipe Melo. Acho um grandíssimo jogador de futebol. Já defendi sua presença na seleção na Copa de 2014 e fui criticado por isso. Ele pode ser craque, bom pai, honesto, leal a quem trabalha com ele. Mas tem postura e discurso bélicos. Agressivos. Violentos. Alguém nega isso? Se negar, pode até parar de ler, sinceramente.
Com a postura de "não levar desaforo para casa", de "bateu, levou", ou melhor, "leve aqui uma antes para não me bater", Felipe Melo é apenas mais um incentivador da violência, quando na verdade precisamos de mais e mais e mais inibidores da violência.
Por ser totalmente contrário a qualquer tipo de violência, fui "acusado" de: ser criado pela avó; tomar leite com pera; ter crescido no play do condomínio; ter apanhado na escola. Puxa. Feliz da sociedade formada de pessoas criadas pelas avós. Certamente é melhor que a sociedade do bullying, da violência, da agressão, da covardia, das coisas tratadas na marra, não no diálogo.
Sim, pelas imagens são os uruguaios que começam a confusão ali no apito final. Ou, na versão deles, continuam a confusão iniciada com a declaração do "tapa na cara". São eles que começam, o que é lamentável, uma vergonha.
Mas, se eles quisessem realmente bater em Felipe Melo, teriam feito ali naquela hora do apito final, não?
Se o cara planeja dar um murro na cara de Felipe Melo, ele vai e dá. Eu apenas vi ali xingamentos, aquele empurra dali, encosta daqui (e, novamente, se houve ofensa racista, é de lá para a delegacia, não para o ringue).
E aí chegamos à parte 2. Felipe Melo vai recuando e sendo tirado pelos companheiros. Ele não corre para se mandar. Ele não corre para o vestiário. Ele corre com a postura corporal de quem quer brigar.
Um jogador do Peñarol corre atrás dele. Um baixinho, um tampinha, como eu. Que já teria batido nele (covardemente) antes, se quisesse fazê-lo. Felipe corria para trás, vários jogadores do Palmeiras estavam em volta e somente um do Peñarol.
Portanto, erra, a meu ver, quem fala que Felipe Melo desferiu aqueles socos "quando cercado por quatro ou cinco", que "ele seria espancado" se não tivesse desferido os golpes. Não, ele não seria espancado. Como não foi antes e como não foi depois, quando verdadeiramente ficou encurralado no córner.
Ele poderia ter feito um milhão de coisas naquela situação. Corrido para o vestiário (de novo). E não, ele não sabia se o vestiário estava fechado ou não naquele momento. Poderia ter dado um empurrão no tampinha. Poderia ter xingado de volta. Poderia ter se escorado nos vários coletes rosas palmeirenses a sua volta.
Mas não, ele desferiu dois socos que são uma imagem horrorosa. Um péssimo exemplo de como resolver as coisas.
Esqueçam o quem começou, quem acabou, etc, etc. E pensem apenas na imagem do soco. Uma criança vendo isso em casa. E o pai falando do lado "tem que bater antes de levar". Pensem no desdobramento horroroso desta imagem e desta conclusão que vocês, que acham que os socos são legítima defesa. Uma pessoa bater na outra com a premissa de "melhor dar do que levar".
Infelizmente, está sendo aplaudido por isso, inclusive por gente que eu admiro.
"O que você faria naquela situação?", é o que mais me perguntaram. Certamente teria me mandado e não tentado socar o rapaz. Simples assim. Quando um não quer, dois não brigam, diz um dos mais sábios ditados da humanidade.
"Legítima defesa", dizem. Defesa do quê exatamente? Ele não havia sofrido nenhuma agressão física até aquele momento. Nenhuma. No máximo, verbal.
Enquanto Felipe Melo corria para trás, quatro jogadores do Peñarol cercaram Fernando Prass e pelo menos dois deles acertaram o rosto do goleiro palmeirense.
Covardes. Uma vergonha. Precisam ser punidos por muitos jogos, a foto é um documento que precisa ser usado. Não sei se os socos em Prass ocorrem antes ou depois dos desferidos por Melo, acho que depois pela imagem, já que já estão no meio do campo e os outros estão correndo para o outro lado, onde estava Melo. Pouco importa.
Vi gente ousando criticar Borja por uma FOTO. Como se esse tipo de agressão não acontecesse em uma fração de segundos. Borja, na imagem em vídeo, é um dos primeiros a tentar tira Melo da confusão. Criticar quem está querendo acalmar as coisas. Típico.
Os jogadores agressores de Prass precisam ser punidos. Felipe Melo precisa ser punido. E o Peñarol precisa ser punido pela falta de segurança no estádio e, aí sim, pelos portões fechados dando ares de emboscada quando a violência se generalizou.
E esta é minha principal crítica a Felipe Melo. Sim, é achismo. Mas um achismo baseado em um milhão de outras confusões de fim de jogo que já vimos. Aquele empurra empurra não teria virado violência generalizada, não fosse o soco de Felipe Melo. Assim como naquele infame São Paulo x Palmeiras de 1994. Será que haveria o quebra pau generalizado, não fosse o soco na cara desferido por Edmundo?
Felipe Melo, depois do soco, que ainda bem ele não acertou, recuou até o córner. Um jogador do Peñarol chegou a pegar até a bandeirinha de escanteio para agredi-lo. Ainda bem, naquele momento apareceram os seguranças do clubes, uns poucos do estádio, Felipe conseguiu sair dali rapidamente. Sim, este foi o momento em que realmente ele estava encurralado. O único. E não, ele não foi espancado. E nem precisou socar ninguém para escapar dali, apenas dar alguns encontrões pelo caminho.
Caminho que ele deveria ter feito desde o apito final. O caminho do vestiário.
O Palmeiras mandou 20 seguranças para o jogo, aparentemente um número acima do normal, porque já imaginava algo do tipo. Há um histórico de coisas assim em campos sul-americanos, ainda que estejam ficando mais raros. Outro dia o Uruguai levou um sacode da seleção brasileira no Centenário e não houve um pontapé em campo, um problema sequer fora.
Mas, se o clube já imaginava, por que os jogadores não saíram fora antes de tudo isso?
Não, a culpa não é do Palmeiras. Quem vai tirar satisfação inicialmente são três ou quatro jogadores do Peñarol. Mas, vou repetir: quando um não quer, dois não brigam.
Os aplausos aos socos me incomodam demais. Como me incomodam, sem dúvida, todas as outras agressões dos uruguaios do Peñarol.
"Você tem sangue de barata, Julio!"
Olha. As baratas estão aí há milhões de anos. E nós, seres humanos, estamos conseguindo acabar com o planeta e contamos nossa curta história de um punhado de milhares de anos com sangue, guerras, luta, violência. Talvez sangue de barata seja necessário em nossas veias.
Sobre o Autor
Julio Gomes é jornalista esportivo desde que nasceu. Mas ganha para isso desde 1998, quando começou a carreira no UOL, onde foi editor de Esporte e trabalhou até 2003. Viveu por mais de 5 anos na Europa - a maior parte do tempo em Madrid, mas também em Londres, Paris e Lisboa. Neste período, estudou, foi correspondente da TV e Rádio Bandeirantes e comentarista do Canal+ espanhol, entre outras publicações europeias. Após a volta para a terrinha natal, foi editor-chefe de mídias digitais e comentarista da ESPN e também editor-chefe da BBC Brasil. Já cobriu cinco Copas do Mundo e, desde 2013, está de volta à primeira das casas.
Sobre o Blog
Este blog fala (muito) de futebol, mas também se aventura em outros esportes e gosta de divagar sobre a vida em nossa e outras sociedades.