Aragonés foi o homem que mudou os rumos da Espanha
Julio Gomes
01/02/2014 12h29
Morreu Luis Aragonés. O mundo do futebol amanheceu mais triste neste sábado, primeiro dia de fevereiro de 2014.
Aragonés foi o homem que mudou os rumos do futebol espanhol. Não tivessem sido as ações corajosas e sábias deste homem, que já não tinha muito a perder, talvez muito do que vimos nos últimos anos não tivesse se concretizado.
Precisamos voltar um pouquinho no tempo, ao segundo semestre de 2004. A Espanha havia acabado de ser derrotada na Eurocopa de Portugal, pela seleção de Felipão. Mais uma vez, o filme se repetia. Um time bom no papel, considerado até favorito mas que, na hora H, decepcionava. O país já estava acostumado com isso. Em 2002, havia sido um juiz na Coreia. Em 2004, um novo anfitrião. Sempre algo acontecia.
Eu já morava na Espanha nessa época, havia chegado em novembro de 2003. E logo identifiquei semelhanças entre os discurso do espanhol com o meu, de torcedor da Lusa. O azarado, injustiçado, roubado, profeta do nunca seremos, acompanhado da eterna e ingrata certeza de que, na hora do vamos ver, algo ruim aconteceria.
A Federação resolve apontar Luis Aragonés como novo técnico. Ele já era uma velhinho de 66 anos de idade, um senhor que não remetia a nada se pensássemos em futebol moderno. Surgiam Mourinho, Rijkaard, novos expoentes, mas a Espanha escolhia um Ferguson sem United para tocar a coisa até a Copa da Alemanha. Um treinador que havia rodado meia Espanha, mas que, em 10, 15 anos, o máximo que havia feito era levar o Atlético de Madri de volta à primeira divisão.
Foi justamente por isso que deu certo. Aragonés pegou a Espanha com o espírito de "não tenho nada a perder". Não tinha rabo preso com jornalistas, que já não davam bola para ele havia anos. Não tinha media training, não estava preocupado em arrumar patrocínios pessoais, em agradar, puxar saco, não iria virar treinador do Real Madrid ou do Barcelona se desse certo na Espanha, não estava preocupado com nada, enfim. Queria apenas fazer a coisa certa, como mandava seu coração.
A sorte de Luis foi a chegada de Ronaldinho ao Barcelona, em 2003, um ano antes dele assumir o cargo. O Barcelona, de Rijkaard, Ronaldinho, Deco e Eto'o, já mostrava o futebol que daria o tom nos anos seguintes. Com qualidade, valorização da bola, predomínio da técnica sobre a força física. Xavi ganha espaço, aparece Iniesta, os baixinhos ganham protagonismo. E esse modo de jogador futebol começa a encantar o país, outros clubes procuram jogar de forma parecida.
Em 2006, quando chega a Copa, o Barcelona era campeão da Europa (após 14 anos de espera), mas a Espanha ainda tinha uma seleção em que predominavam as velhas "vacas sagradas". Os Raúls, Albeldas e Barajas da vida. Luis inova. Leva Marcos Senna, negro e nascido em outro país, para ser titular. Saca Raúl do time. Foi massacrado. Não há outra verbo. O que se via na imprensa era algo bastante mais duro, frequente e mais intenso do que vimos Felipão passar em 2002, com o caso Romário. Aragonés era massacrado em todos os jornais, todas as rádios, todos os debates de TV. Eram ataques pessoais, baixos, nojentos.
E ele amarelou na Alemanha, essa que é a verdade. Na hora do vamos ver daquela Copa, colocou o time que as pessoas queriam, não o que ele queria. Perdeu da França.
A surpresa foi gigantesca quando saiu o anúncio de sua renovação. E o divisor de águas foi uma derrota por 3 a 2 para a Irlanda do Norte, em 6 de setembro de 2006, eliminatórias da Eurocopa 2008. A partir dali, a partir daquele jogo, Aragonés definitivamente resolveu ser ele mesmo. Deu um murro na mesa. Desafiou o país inteiro. Deixou de convocar Raúl e colocou o projeto nas mãos de Casillas e Xavi. Novas lideranças de times rivais, mas amigos desde as seleções de base. Dois exemplos em qualquer aspecto que se queira levar em conta.
A Espanha passava a adotar o tiki taka, termo cunhado à época pelo já falecido narrador Andrés Montes. Um estilo mais Barça, sem influência do futebol praticado pelo Real Madrid.
Todos os jogos no Santiago Bernabéu tinham cânticos de "Raúl, Raúl, Raúl". Que iam muito além de um simples apoio ao principal jogador do time. Eram uma resposta a Aragonés. Por outro lado, os jogos do Atlético de Madri eram marcados pelos cânticos de "Luis Aragonés, Luis Aragonés…". Mesmo quando nenhum dos envolvidos estava presente. Era o clube onde Luis havia triunfado no passado, os Atléticos se sentiam obrigados a apoiar um dos deles diante do massacre promovido pelos meios de comunicação da capital, Raulistas até o último fio de cabelo.
Pessoalmente, eu torcia muito por Luis Aragonés. Raúl era, à época, um espectro do jogador do passado, ultravalorizado por jornalistas que tinham muito mais compromisso com as amizades e o emprego do que com as análises frias, técnicas e táticas.
A Eurocopa de 2008 é um marco. Não só na história da Espanha, mas do futebol mundial. Eu tenho sérias dúvidas se a Espanha teria ganhado tudo o que ganhou depois, não fosse aquela Euro. Sérias dúvidas se esse futebol brilhante teria inspirado o resto do mundo, como inspirou. Hoje, o futebol de alto nível, inclusive o da nossa seleção, tem marcas importantes do que foi praticado pela Espanha a partir de 2007 (claro, sem desconsiderar a revolução da revolução, praticada no Barcelona a partir da chegada de Guardiola. A duas coisas andaram juntas).
Luis Aragonés, o sábio de Hortaleza, foi o homem que teve a coragem de adotar um estilo e uma postura que iam bastante além do "ganhar". Era uma filosofia, uma maneira de ver futebol que havia sido meio que oprimida ao longo de sua carreira de treinador. Ele literalmente desencanou do que o mundo dizia.
Depois de tantos anos com jogadores medíocres nas mãos, pegou o suprasumo do país dele e resolveu fazer o que sonhava. Se desse certo, ótimo. Se não desse, ele morreria em paz.
Para nós, brasileiros, o que vou falar agora é difícil de entender. Mas a Eurocopa-2008 é maior para a Espanha do que a Copa do Mundo-2010. Nós temos essa mania de colocar a Copa acima de tudo e de fazer "escadinhas de valor" para os torneios de futebol. Pensem no Paulista de 77 para o Corinthians. A comparação é mais ou menos essa.
Eu tive a felicidade de viver tudo aquilo. Estava em Viena na final. Fiquei amigo de Marcos Senna. Conversei com Luis Aragonés. Nada é mais satisfatório do que viver a história a poucos metros, não apenas conhecê-la por vídeos e leituras.
Naquele verão de 2008, a Espanha provou para si mesma que era possível ganhar. Que era possível ser ela mesma. "Podemos", era o mote do canal Cuatro, recém lançado na TV aberta do país e que tinha os direitos de transmissão daquela Euro. Era perfeito. Poder ou não poder era o X da questão. E eles viram que podiam.
Viram por causa de Luis, o bom velhinho.
Aragonés mudou o futebol. Descanse em paz.
Este link vale ser clicado:
http://www.marca.com/2014/02/01/futbol/seleccion/1391247292.html
Lembram-se do "Luis Aragonés, Luis Aragonés.." que eu comentei? Entoado pelo capitão do Real Madrid. Não poderia haver nada maior.
Sobre o Autor
Julio Gomes é jornalista esportivo desde que nasceu. Mas ganha para isso desde 1998, quando começou a carreira no UOL, onde foi editor de Esporte e trabalhou até 2003. Viveu por mais de 5 anos na Europa - a maior parte do tempo em Madrid, mas também em Londres, Paris e Lisboa. Neste período, estudou, foi correspondente da TV e Rádio Bandeirantes e comentarista do Canal+ espanhol, entre outras publicações europeias. Após a volta para a terrinha natal, foi editor-chefe de mídias digitais e comentarista da ESPN e também editor-chefe da BBC Brasil. Já cobriu cinco Copas do Mundo e, desde 2013, está de volta à primeira das casas.
Sobre o Blog
Este blog fala (muito) de futebol, mas também se aventura em outros esportes e gosta de divagar sobre a vida em nossa e outras sociedades.