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Julio Gomes

Quem não está dopado no esporte?

Julio Gomes

16/09/2018 10h54

Assisti, com certo atraso, ao documentário Icarus – disponível no Netflix e vencedor de Oscar de melhor documentário neste ano.

Para quem gosta de esporte, como eu, um apaixonado, que guarda jornais e faz tabelas, reais ou fictícias, desde os 5 ou 6 anos de idade, é um soco no estômago.

Uma visão mais curta deste documentário fará o espectador se prender ao escândalo russo. Se olharmos de uma forma ampla e pegando tudo que é falado clara ou não tão claramente pelos entrevistados, não dá para fugir da seguinte pergunta: quem NÃO se dopa?

O que exatamente vimos a vida toda, sofrendo, torcendo, narrando, conversando sobre, sem termos sido enganados?

É claro que há atletas limpos no mundo. Sim. Quero crer que sim. E, para eles, isso deve ser mais difícil do que para mim e para você. Porque esses atletas limpos não só competem em desvantagem como ainda levam a má fama da categoria.

Mas Icarus mostra, na voz de cientistas, de gente envolvida com doping e antidoping, que se dopar e escapar de ser pego é fácil. Simples assim. Não é a coisa mais complicada do mundo. Complicado, sim, é ganhar sem se dopar, especialmente em modalidades tão físicas quanto ciclismo, natação, atletismo, por exemplo.

O filme sai de um golpe de sorte. O documentarista Bryan Fogel, ciclista amador, queria documentar, em primeira pessoa, como o doping mudaria seu próprio desempenho. Foi buscar formas de fazê-lo e é nesta primeira parte que fica claro como é simples e fácil se dopar e driblar os controles.

Quem quiser ver o copo meio cheio, irá identificar o momento em que Fogel fracassa em sua primeira competição dopado e tem desempenho pior do que quando havia corrido limpo. "Posso me dopar a vida inteira que nunca vencerei o Tour de France", fala, em determinado momento. Ou seja, em uma visão otimista, pelo menos podemos pensar que, já que se dopam todos, está constantemente ganhando provas e medalhas quem é, de fato, melhor.

É neste momento que se cruzam os caminhos de Fogel e Grigory Rodchenkov, diretor da agência antidoping russa. Era ele quem orientava o doping forçado de Fogel. No meio de tudo isso, Rodchenkov aparece no centro das acusações de um esquema de doping para favorecer atletas russos.

Rodchenkov foge do país e conta tudo a Fogel – é quando Icarus se transforma e ganha vida. O esquema era gigantesco e envolveu uma surreal troca de frascos durante a Olimpíada de Inverno de Sochi, quando a Rússia surpreendentemente liderou o quadro de medalhas – tudo foi provado, e o país acabaria sendo banido dos Jogos de Inverno de 2018, disputados na Coreia do Sul. Rodchenkov está sob programa de proteção de testemunhas, em algum lugar dos EUA.

Acho que, se eu tivesse visto o documentário antes de passar os 40 dias que passei na Rússia por causa da Copa do Mundo, teria olhado para o país com outros olhos – especialmente para a seleção local, que chegou às quartas de final e só caiu nos pênaltis. Fico pensando em todos os enormes atletas russos que acompanhamos na vida. Popov, Isinbayeva, Sharapova. Tanta gente. Quem era limpo? Quem me enganou?

O discurso do governo russo, acusando Rodchenkov de ter agido sozinho, é patético. Os Jogos de Sochi catapultaram a popularidade de Putin e está muito claro como a mídia consegue facilmente destruir a reputação de qualquer um e manipular a opinião pública.

Tudo aquilo que vi ao vivo em Pequim-2008. Pela TV desde Seúl. Quem era limpo? Quem me enganou? Depois da cara de pau de Lance Armstrong, como acreditar em qualquer atleta? Depois de Marion Jones. Dos recordes de países da Cortina de Ferro que nunca caíram e nunca cairão. Quantos outros países não doparam ou dopam seus atletas sistematicamente? Quantos não fecham os olhos, como foi feito com Carl Lewis nos anos 80?

Como eu disse lá no início, Icarus me faz mais do que desprezar o esporte russo. Icarus me faz pensar mais além. Quanto tempo na vida eu perdi em frente à TV?

Eu sei que posso parecer leviano com esta pergunta e com a pergunta no título deste post. Sei que, ao generalizar, podemos cometer algumas tremendas injustiças. Me desculpo de antemão com atletas que podem estar lendo isso aqui e se sentindo ofendidos. Mas é isso. Hoje, está difícil acreditar em qualquer coisa.

Sobre o Autor

Julio Gomes é jornalista esportivo desde que nasceu. Mas ganha para isso desde 1998, quando começou a carreira no UOL, onde foi editor de Esporte e trabalhou até 2003. Viveu por mais de 5 anos na Europa - a maior parte do tempo em Madrid, mas também em Londres, Paris e Lisboa. Neste período, estudou, foi correspondente da TV e Rádio Bandeirantes e comentarista do Canal+ espanhol, entre outras publicações europeias. Após a volta para a terrinha natal, foi editor-chefe de mídias digitais e comentarista da ESPN e também editor-chefe da BBC Brasil. Já cobriu cinco Copas do Mundo e, desde 2013, está de volta à primeira das casas.

Sobre o Blog

Este blog fala (muito) de futebol, mas também se aventura em outros esportes e gosta de divagar sobre a vida em nossa e outras sociedades.