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Julio Gomes

Beijos roubados, agressões e o choque cultural

Julio Gomes

30/06/2018 10h18

Nati Jota, repórter da ESPN argentina, diz que já está acostumada. Ela fazia uma entrada ao vivo, na porta do hotel da Argentina, em Kazan, quando um rapaz enrolado em uma bandeira, ele mesmo também ao vivo, com seu celular conectado a alguma rede social, lhe tascou um beijo na bochecha.

Nati se desvencilhou dele, continuou fazendo seu trabalho e foi embora, como se nada tivesse acontecido.

A real é que para ninguém em volta parecia ter acontecido algo anormal. Fui a exceção. Talvez não fosse para mim alguns anos atrás, porque é assim que nós, homens, somos criados e "educados". Mas, hoje, é. Hoje, ainda bem, entendo um pouquinho o tamanho da agressão que um gesto como esse significa para uma mulher. A invasão. O desrespeito.

Fiquei sem saber o que fazer. Nati foi embora. Mas os caras ficaram ali. Pensei em entrevistá-los. Afinal, esses caras, os agressores, somem rapidamente após o ato. Mas achei que entrevistá-los era irrelevante em função da situação. Fui lá, na real, dar uma lição de moral.

Eram todos do Cazaquistão. Um dos amigos falava inglês. Enquanto eu falava, "vocês entendem que isso está errado? Que vocês não podem fazer isso?", eles riam como bobos. Continuavam filmando, inclusive. Não sei o que era mais heroico para eles, estar onde Messi chegaria em instantes ou ter tascado o beijo na repórter.

"Você sabia que pessoas que fazem isso estão ficando mundialmente famosas?", perguntei. "Sim, claro!", respondeu o que falava inglês, feliz da vida. "Famosos pelo absurdo que é. Tem gente sendo presa aqui na Rússia por isso", blefei, porque sabemos que ninguém está sendo preso por isso. Foi aí que ele fechou a cara e entendeu que eu não estava ali para cumprimentá-lo ou saudá-lo.

"Just because of this little kiss??"… "só por esse beijinho?".

"Sim, senhor. Quem define se pode ou não pode, se é 'little' ou não é, é ela, não você", respondi eu. Um pouco desconcertado, mas não muito, ele murmurou "I'm sorry". Enquanto isso, o boboca ao lado, autor da agressão, continuava rindo e filmando como o boboca que era.

"Não é comigo que você tem que se desculpar, é com ela".

A estas alturas, o que falava inglês já não estava gostando muito daquilo, puxou os outros amigos e eles foram embora. Não queriam me deixar fotografá-los.

"Tento não fazer drama", me disse Nati Jota, a quem encontrei alguns minutos depois. "Claro que não é bom que aconteça, mas as coisas estão mudando em relação ao respeito à mulher e a violência de gênero, porque isso é violência de gênero. Trato de não ficar angustiada, trabalho com isso, me meto muito no tumulto, com os torcedores, já me aconteceram coisas piores. Tento dar uma risada, sair, às vezes você está ao vivo, também não pode arruinar todo teu trabalho por isso."

"Se está falando tanto do movimento feminista, do respeito à mulher, que cada vez menos essas coisas estão acontecendo comigo na Argentina. Não é que a Argentina esteja super avançada, mas se está falando muito neste momento e os homens estão tendo mais cuidado. Mas quem sabe aqui, por ter muita gente de outros países, que talvez sejam mais deslocados… Há países em que ainda não chegou esta consciência", seguiu Nati.

A repórter parecia muito firme diante de tudo aquilo, muito decidida e – e isso é triste – muito conhecedora da situação. Só se soltou um pouquinho quando perguntei, de forma simples e direta. "Como você se sente?".

"Me sinto fraca. Me sinto duplamente fraca. Ser mulher já te faz ser mais fraca que um homem, por questões físicas e sociais, e também porque você está trabalhando, no ar, tomando cuidado com câmera e tudo mais. Não estou concentrada, pensando no que está em volta, é uma questão de confiança com quem está em volta. Você fica exposta."

Nati tocou no ponto que foi o que mais me chamou a atenção enquanto eu falava com os rapazes do Cazaquistão. Eles realmente não entendiam qual era o problema.

O choque cultural.

Longe de mim querer perdoar ou passar a mão na cabeça, até porque isso não cabe a mim fazer, mas sem dúvida ainda estamos no início de um processo. E será necessária uma grande vontade política e midiática para mudar o estado das coisas e desenraizar o machismo impregnado em todas as sociedades.

Uns 20 minutos depois, percebi que ainda estava tremendo. De raiva, não de medo ou qualquer coisa do tipo. Me senti bem por ter falado com ela e com eles. Sinto muito pelo que fomos e somos, os homens do mundo.

 

Sobre o Autor

Julio Gomes é jornalista esportivo desde que nasceu. Mas ganha para isso desde 1998, quando começou a carreira no UOL, onde foi editor de Esporte e trabalhou até 2003. Viveu por mais de 5 anos na Europa - a maior parte do tempo em Madrid, mas também em Londres, Paris e Lisboa. Neste período, estudou, foi correspondente da TV e Rádio Bandeirantes e comentarista do Canal+ espanhol, entre outras publicações europeias. Após a volta para a terrinha natal, foi editor-chefe de mídias digitais e comentarista da ESPN e também editor-chefe da BBC Brasil. Já cobriu cinco Copas do Mundo e, desde 2013, está de volta à primeira das casas.

Sobre o Blog

Este blog fala (muito) de futebol, mas também se aventura em outros esportes e gosta de divagar sobre a vida em nossa e outras sociedades.