Diário da Copa: Volgogrado e o sofrimento que não conhecemos
Você precisa ver o nosso monumento. Não se preocupe, não te cobrarei nada. É muito importante para mim mostrar a minha cidade a você.
A mensagem aparece escrita na tela do meu telefone celular. O Google Tradutor, meu melhor amigo na Rússia, me mostra. Para que ela aparecesse ali, precisou sair da boca de Sergei Bulatkin, 63 anos, olhos marejados, eu acho.
Eu havia acabado de chegar de trem a Volgogrado. Uma cidade que queria muito conhecer. Andei 17 horas de trem para passar 10 horas ali. Era o plano. Chega, vai visitar o memorial da Batalha de Stalingrado, corre para o jogo, faz as entrevistas, bora para o aeroporto e tchau.
Quando contei a Sergei (foto abaixo), motorista de uma van da Fifa, sobre a maratona a que me submeti para simplesmente colocar os pés na cidade dele, ele se surpreendeu. E, depois, me surpreendeu com o convite. Li a tradução na tela do celular e imediatamente estendi a mão para ele. Temos um trato.
E lá fomos nós. Eu havia lido bastante sobre o local. A colina chave de uma cidade chave. Os alemães precisavam controlar o rio Volga, isso cortaria uma grande via soviética e lhes daria acesso a campos de petróleo. Havia também o simbolismo de tomar uma cidade com o nome de Stalin.
A colina, chamada Mamayev Kurgan, trocou de mãos diversas vezes durante os 200 dias de batalha, entre agosto de 1942 e fevereiro de 1943. O inverno, um dos mais duros de que se tem notícia, foi parte importante. Mas não tanto quanto uma população que se recusou a se render e um exército que, apesar de jovem e inexperiente, se recusou a perder.
Eu pergunto algumas vezes a Sergei se ele havia perdido familiares na guerra. Ele fala de outra coisa. Às vezes o tradutor não funciona. Às vezes a comunicação digital nos permite criar censuras analógicas.
Todo mundo perdeu alguém em Stalingrado. Foram 2 milhões de mortos. Sobraram 6 mil pessoas na cidade após a destruição total.
Sergei é bom de foto. Gostei especialmente de uma em que ele agachou, entre grunhidos, e me pegou de corpo inteiro com a estátua de 85 metros que risca o céu de Volgogrado. A mais alta da Europa. Só a espada pesa 14 toneladas. Na tradução literal, a "Pátria-Mãe Chama". Todos atenderam ao chamado em 1942.
Caminhamos. E, enquanto caminhamos, não podemos nos esquecer dos ossos e balas e filhos e sonhos que estão enterrados sob nossos pés.
Do pé da enorme estátua, vemos o Volga. E o estádio da Copa. Onde havia bombas, hoje há tranqüilidade. E mosquitos. Stalingrado. Volgogrado. Por que não Mosquitogrado? Nunca vi tantos. Em russo, Moshkas.
"Só aparecem aqui em junho", gargalha Andrey Ivanov. Engenheiro com passagens "por todos os istão que você pode imaginar… Tadjisquistão, Cazaquistão, Afeganistão", etc, etc, etc. Hoje, apenas motorista. Inglês perfeito. Com ele, dispensamos o aplicativo tradutor para visitar o museu Panorama.
Havia dois anos que ele não entrava no museu que relembra, com detalhes e uma exposição de bombas, armamentos, munições, uniformes, fotos e muito mais, a Batalha. Tanques nazistas, quadros celebrando os comandantes soviéticos. E, no último andar, o tal panorama. Uma pintura em 360 graus que tentar nos fazer sentir dentro da guerra – o que é, naturalmente, impossível.
"Quando a guerra vem até a tua cidade, você tem que lutar. A média de vida de um soldado no front era de 7 minutos. Matar, matar, matar. Foi isso. Quis vir ao museu, mas a verdade é que me sinto mal quando entro aqui. É um pouco pesado para mim", me conta Andrey. E isso porque ele não perdeu ninguém na guerra – uma raridade na Rússia.
Seu avô lutou e sobreviveu. Era motorista de caminhão. E, sob fogo intenso, transportava bens e comida por cima de um lago congelado para a população de Leningrado, cidade sitiada pelos nazistas por quase 1000 dias.
Leningrado também mudou de nome. É São Petersburgo, onde o Sol nunca se põe completamente nesta época. São as noites brancas. Muito mais agradáveis que as noites de terror vividas pelos antepassados de Sergei e Andrey.
Ontem, Volgogrado se despediu da Copa com o jogo entre Polônia e Japão. E uma polêmica vazia sobre uma suposta falta de fair play. É uma das quatro cidades onde a Copa já não será mais disputada, mas que, ao contrário de outras, não será esquecida nunca.
Nós não conhecemos a guerra. Não é fácil nem sequer imaginar o que foram os 200 dias de Stalingrado. As visitas te fazem se sentir pequeno e colocar tudo em perspectiva. Até a Copa do Mundo.
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