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Julio Gomes

Diário da Copa: Futebol contra o ódio

Julio Gomes

23/06/2018 09h01

Hoje eu queria falar de Kaliningrado. Uma cidade daquelas meio surreais. Um enclave russo no meio da Europa. Uma cidade que foi alemã por 700 anos e soviética por 70. A história é boa. Mas ela vai ficar para amanhã (com vídeo e tudo!).

Porque não é possível deixar de lado o que foi o jogo mais político dos últimos tempos em Copas do Mundo.

E com uma ironia daquelas. A Suíça. Justo a Suíça. A neutra Suíça, que não se envolve em guerras nem pepinos, esteve neste jogo, o mais político desde aquele Irã x Estados Unidos de 1998.

Antes da partida entre Sérvia e Suíça, eu estava de olho no clima nas ruas de Kaliningrado. Sérvios odeiam albaneses e kosovares – e vice-versa. O time suíço tem três jogadores importantes com essas raízes. E se alguém aparecesse com uma bandeira de Kosovo ou da Albânia no meio do mar de sérvios aqui em Kaliningrado?

Ainda bem, não houve nada do tipo. Apenas um grupo de suíços fazendo fondue de queijo na porta do estádio. Mais suíço da gema do que isso, impossível. Quase pedi um pouquinho. Com esse frio que faz por aqui, ia cair bem!

Não gosto de generalizar povos, mas os sérvios tem um gesto corporal muito agressivo. São grandões, donos de vozeirão, sempre parecem prontos para brigar. Dá um pouco de medo deles.

Dentro do estádio, eles apoiaram lindamente o time. Mas xingaram horrivelmente os kosovares do outro time. De forma bastante agressiva, apontando dedo, cuspindo saliva e marimbondos.

E eis que justamente dois dos alvos, Xhaka e Shaqiri, fizeram os gols da virada do aguerrido time suíço. Pessoas cujas famílias fugiram da guerra e da matança que estava sendo levada a cabo pelos sérvios nos anos 90. Não quero aqui adotar lados. Nenhum de nós tem condição de fazê-lo. Apenas tento me colocar no lugar destes dois rapazes.

A raiva no olhar de Xhaka, ao meter o golaço e fazer com as mãos a referencia à bandeira da Albânia, foi qualquer coisa de muito séria.

Conversei com Lichtsteiner, capitão suíço, arranhando meu italiano que já está virando coisa do passado. "Estamos felizes pela família deles". É isso. Vai muito além do futebol, ainda que tenha gente que insista em querer separar os mundos.

É claro que o ideal é que política, ainda mais a suja, de guerra, e esporte não se misturem. Assim como o ideal era que a população de Konigsberg, hoje Kaliningrado, não tivesse sido dizimada na Segunda Guerra. O mundo está longe de ser o ideal.

Não dá para fechar os olhos diante do ódio. E o ódio estava no ar em Kaliningrado. Um jogo para o qual ninguém estava dando muita bola. E que entrou para a história. Com um detalhe: foi um jogaço.

 

Sobre o Autor

Julio Gomes é jornalista esportivo desde que nasceu. Mas ganha para isso desde 1998, quando começou a carreira no UOL, onde foi editor de Esporte e trabalhou até 2003. Viveu por mais de 5 anos na Europa - a maior parte do tempo em Madrid, mas também em Londres, Paris e Lisboa. Neste período, estudou, foi correspondente da TV e Rádio Bandeirantes e comentarista do Canal+ espanhol, entre outras publicações europeias. Após a volta para a terrinha natal, foi editor-chefe de mídias digitais e comentarista da ESPN e também editor-chefe da BBC Brasil. Já cobriu cinco Copas do Mundo e, desde 2013, está de volta à primeira das casas.

Sobre o Blog

Este blog fala (muito) de futebol, mas também se aventura em outros esportes e gosta de divagar sobre a vida em nossa e outras sociedades.