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Julio Gomes

Lá se foram 20 anos. E eu te odeio, senhor Castrilli

Julio Gomes

26/04/2018 04h00

Caro Senhor Javier Castrilli,

você não me conhece. Eu te conheço por um momento que compartilhamos 20 anos atrás.

Naquele dia 26 de abril de 1998, eu ainda não era jornalista. Era apenas um projeto de jornalista, em meu segundo ano de faculdade. Você participou da minha despedida. Aquele jogo entre Portuguesa e Corinthians, no estádio do Morumbi, em São Paulo, foi meu último evento como um amador. Como um puro torcedor.

Nunca mais voltei a ser. Um pedaço de mim foi arrancado por uma decisão sua. Talvez tenha até de lhe agradecer. O senhor me mostrou que era inútil tentar chegar onde nunca me deixariam chegar.

Alguns dias depois, comecei a trabalhar no jornalismo esportivo. No UOL, que se transformaria no maior portal de notícias da América Latina. E, acredite se quiser, senhor Castrilli, porque muitos não acreditam, tudo muda quando começamos a trabalhar. O coração não deixa de sentir amor pelo clube ou pela seleção nacional. Mas ele fica guardadinho, engavetado.

Se naqueles tempos tivéssemos redes sociais, talvez eu tivesse comprometido minha carreira. Teria certamente perdido a linha. Inclusive com colegas de imprensa.

Colegas que caíram no conto do técnico do Corinthians, falando de dois supostos gols irregulares no jogo para o meu time. No primeiro, houve um impedimento não marcado uns 5 minutos antes do gol. No segundo, não havia impedimento algum, em bola tocada para trás pelo jogador Sylvinho, do Corinthians. Talvez estes colegas não soubessem separar amor de profissão. Talvez ainda não saibam. Alguns. Outros tantos, sim.

Mas eu evoluí. Procuro não perder a linha em redes sociais. Aliás, não perco mais a linha com futebol faz tempo.

O senhor já havia inventado um pênalti para os adversários quando ganhávamos por 1 a 0. Mas o que definiu aquele jogo foi um outro pênalti que o senhor inventou aos 48 minutos do segundo tempo. Um lance em que o zagueiro César ajeita a bola na barriga, ela toca em sua coxa na sequência. A imagem é clara. Mesmo que tivesse encostado no braço após o toque na barriga, não seria uma ação faltosa.

O senhor inventou um pênalti no último lance do jogo. O senhor definiu que o Corinthians passaria para a final do campeonato. Os dois pênaltis foram tão absurdos (do primeiro ninguém se lembra, dado o escândalo maior que foi o segundo) que é difícil não imaginar que o senhor tinha uma missão a cumprir naquela tarde.

Vou te contar uma coisa que me espantou, para logo depois te contar uma que vai te espantar.

Me espantou quando meu colega jornalista de UOL e Bandsports, Napoleão de Almeida, disse que te entrevistou ontem e que o senhor insistiu que o lance foi de pênalti. Aí precisamos ou de óculos com um grau maior ou de um livro de regras. Ou as duas coisas. Quem sabe eu lhe mande por correio, basta me dar o endereço.

Agora vou lhe contar algo que talvez lhe espante. A Portuguesa nunca mais chegou a uma final depois daquele jogo.

Não que chegasse com frequência. A Portuguesa foi grande nos anos 50. Teve alguns momentos importantes na história. Revelou jogadores importantes para o futebol brasileiro. Mas nunca tivemos como competir seriamente com os maiores. Aquele era um desses momentos raros. Foram nossos melhores anos. Mas eles se foram sem um título.

Nossa torcida é pequena, senhor Castrilli. E já era pequena em 26 de abril de 1998. Tão pequena que talvez o senhor não tenha nos notado ali no Morumbi. Eu me lembro que deveríamos ter ocupado uma das quatro partes do anel superior do estádio. Duas horas antes do jogo, a polícia gentilmente nos pediu para nos juntarmos um pouco mais, e abriu uma parte do nosso quadrante para os torcedores rivais. Uma hora antes do jogo, um pouco mais. Meia hora antes do jogo, um pouco mais. 10 minutos antes do jogo, um pouco mais.

A esta altura, já estávamos dividindo o mesmo degrau de arquibancada com o patrício. No máximo uns 20 metros havia entre um alambrado e a cordinha que a polícia esticou para nos separar da massa rival. Poderíamos ter sido massacrados ali.

Mas, quando o jogo começou, o medo virou segurança. Porque nosso time era bom, senhor Castrilli. Mas como era! O senhor se lembra? Deve ter percebido que o time era bom e dificultaria sua missão. Jogavam nele o Evair, o Leandro, o César, o Evandro, o Alexandre, o Carlinhos. Nosso time era bom de verdade. Tão bom que três meses depois ganhou de 7 a 2 do São Paulo – que seria o nosso adversário naquela final que o senhor não nos deixou jogar. Tão bom que sete meses depois estava jogando a semifinal do Campeonato Brasileiro.

Foi nosso último suspiro, senhor Castrilli. Desde então, tivemos dezenas de presidentes, dezenas de técnicos, dezenas de rebaixamentos, centenas de tristezas. Hoje, não temos nem mais divisão para jogar, senhor Castrilli. Nosso clube acabou.

O senhor não tem culpa disso, não senhor. Sua culpa foi ter nos impedido de ter uma rara felicidade. Teria sido uma felicidade imensa, sem dúvida. Ganhar do grande rival diante de 80 mil torcedores deles.

Eu nunca senti tanta raiva de uma pessoa na vida, senhor Castrilli. E imagino que não deva ser agradável ouvir isso. Mas infelizmente, preciso lhe dizer, não estou aqui para lhe agradar.

Talvez se tivéssemos nos encontrado no restaurante Jardim di Napoli naquela noite, onde me contaram que o senhor jantou, aliás, ótima escolha, o polpettone deles é o melhor do mundo, talvez eu tivesse acabado preso naquela noite. Mas eu tinha outro compromisso. Era aniversário da minha namorada. Hoje, ela é minha esposa. Portanto, senhor Castrilli, eu lembro do senhor todos os anos. O senhor nunca falta. Não é apenas uma memória distante. É uma memória anual.

Nós nunca nos encontraremos. Mesmo com o telefone em mãos, não tenho coragem de te ligar. Por isso, resolvi escrever, que é o que eu sempre fiz melhor. É como eu consigo organizar melhor meus sentimentos.

O mundo é incrível, senhor Castrilli. Porque a tecnologia nos dá a chance de nos conhecermos 20 anos depois. Basta eu clicar "enviar". E pronto. estou falando com o senhor. A pessoa que mais odiei e xinguei em toda a minha vida, mesmo sem saber se o senhor é um bom filho, um bom pai, um bom marido. Talvez seja, talvez não.

Eu te odeio mesmo assim, preciso lhe dizer.

Outros juízes erraram. O futebol é cheio disso. Mas os times prejudicados sempre têm uma segunda chance. Nós não tivemos, senhor Castrilli. Faz 20 anos. E nós nunca mais teremos, senhor Castrilli. Tente conviver com isso. Pare agora. Repire. Tire o olho desta tela. E pense nisso. Nós nunca mais teremos uma chance, senhor Castrilli. Eu gostaria muito que o senhor levasse consigo esta culpa até o fim dos teus dias.

Nós. Nunca. Mais. Tivemos. Uma. Chance. Nós. Nunca. Mais. Teremos.

O senhor nos fez muito mal, senhor Castrilli. A mim, a meu velho pai, que jogou na Portuguesa, a meu irmão, meu inspirador irmão, que me levava a jogos desde os meus 3 ou 4 anos, que trouxe o futebol e o jornalismo até mim, mas que não pôde estar comigo aquele dia, pois estava em alguma corrida de Fórmula 1 em algum lugar do mundo ouvindo o jogo por um telefone.

Se conversássemos um dia, talvez a única pergunta que eu poderia lhe fazer seria "por que?". Por que decidiu nos eliminar, senhor Castrilli. Por que me fez chorar tanto de raiva naquele 26 de abril, senhor Castrilli. Por que impediu que tantas almas que ouvem a vida inteira sobre o fracasso de sua escolha clubística pudessem ter alguns poucos dias de plenitude, senhor Castrilli. Por que tantas pessoas, que já eram velhinhas, morreram sem saber o porquê, senhor Castrilli.

Porque há um porquê. Eu sei que há. Você sabe que há. E você sabe que eu sei que o senhor nunca irá contar. Talvez já tenha até apagado da memória, tanto tempo se passou, eu também tento apagar da minha memória besteiras que fiz, frases que não queria ter falado, ofensas que não teria ter proferido. É uma proteção. Eu entendo.

Ao mesmo tempo, seria digno confessar, senhor Castrilli. Confessar que errou. Confessar por que errou. Lavaria a sua alma. Seria libertador, acho eu. Veja como evoluí. Já sou até capaz de desejar teu bem.

Mas eu te odeio, Castrilli. E esta verdade não vai mudar.

Por fim, acabo esta carta com meus mais sinceros votos. Vá para o inferno.

Saludos, Julio.

Este texto foi traduzido para o espanhol e enviado por WhatsApp para o celular do ex-árbitro, o argentino Javier Alberto Castrilli

Sobre o Autor

Julio Gomes é jornalista esportivo desde que nasceu. Mas ganha para isso desde 1998, quando começou a carreira no UOL, onde foi editor de Esporte e trabalhou até 2003. Viveu por mais de 5 anos na Europa - a maior parte do tempo em Madrid, mas também em Londres, Paris e Lisboa. Neste período, estudou, foi correspondente da TV e Rádio Bandeirantes e comentarista do Canal+ espanhol, entre outras publicações europeias. Após a volta para a terrinha natal, foi editor-chefe de mídias digitais e comentarista da ESPN e também editor-chefe da BBC Brasil. Já cobriu cinco Copas do Mundo e, desde 2013, está de volta à primeira das casas.

Sobre o Blog

Este blog fala (muito) de futebol, mas também se aventura em outros esportes e gosta de divagar sobre a vida em nossa e outras sociedades.