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Julio Gomes

Torcedores coniventes atacam quem não deve e dão carta branca à cartolagem

Julio Gomes

16/01/2018 08h37

Lucas Lima saiu do Santos, e o clube não ficou com um tostão. Gustavo Scarpa saiu do Fluminense, e o clube não ficou com um tostão.

Estamos em 2018 e ainda tem gente falando de Lei Pelé e demonizando empresários. Estamos em 2018, era do jornalismo sob ataque no mundo todo, e quando um colega levanta algumas suspeitas na relação entre Cruzeiro e "investidores", o que a torcida faz? Cria uma super hashtag xingando jornalista e emissora. "Campanha" que ganha apoio de outras torcidas.

O que se quer do futebol, afinal?

Está ficando cada vez mais claro que o torcedor tem o que merece. Clubes falidos. Um futebol falido.

Sempre tratamos aqui o torcedor como vítima. Eu tenho sérias dúvidas se ele é vítima do estado atual das coisas. A meu ver, tem responsabilidade. Muita.

Claro que a imprensa também tem. E claro que a cartolagem tem muito mais. Em ambos os casos, o que vemos são muitos "profissionais" atuarem como… torcedores.

É muito simples ficar lamentando o fato de o Palmeiras ter mais dinheiro que os outros e poder pagar a Lucas Lima e Scarpa salários que outros não podem. É muito simples também ficar xingando jornalista que "fala mal do seu clube". O mais fácil de tudo ainda é reclamar da Lei Pelé ou da famosíssima conspiração do eixo Rio-SP – um devaneio de quem nunca colocou o pé em uma redação para saber como funciona.

Empresários também existem na Europa. A "Lei Pelé", as equivalentes dela, também. O fatiamento de jogadores entre clubes grandes e pequenos (ou seja, empresários) segue existindo aqui, em um claro movimento de burlar a tentativa que a Fifa fez de acabar com isso em 2015. Aqui leis existem para serem dribladas, não cumpridas.

O que quero ver mesmo é quando vai chegar o momento em que torcedores de futebol cobrarão os dirigentes de seus clubes. Não por resultados e títulos. E, sim, transparência e responsabilidade financeira.

Como instituições como Santos e Fluminense perdem ativos desta forma e fica por isso mesmo?

Não, não estou falando de uso de violência ou de faixinha inofensiva na arquibancada.

Tivemos dois movimentos recentes em nosso futebol em que agentes externos entraram na jogada para criar regras de responsabilidade aos clubes.

Um foi o movimento Bom Senso, que partiu de jogadores. Queriam apenas receber em dia. A pauta se ampliou. Tudo ali beneficiava o futebol e os principais atores do futebol (os jogadores). Deu no quê? Nada. Qual foi o apoio das arquibancadas? Nenhum. Zero. Basicamente quem vai ao estádio escolheu um lado: o da cartolagem.

O segundo movimento foi o Profut, um refinanciamento de dívidas promovido pelo governo federal, que exigiria contrapartidas de transparência e responsabilidade.

Mais uma vez, qual foi o apoio popular? Zero. Nenhum. O Profut já sofreu modificações, sempre beneficiando clubes e cartolagem. E, claro, a "bancada da bola" no Congresso conseguiu o que queria. Não sem antes ter feito todo o possível para derrubar a ex-presidente da República que, entre tantas críticas que merecia, pelo menos era a única política com ojeriza da cartolagem e que parecia a fim de desafiá-los (por questão pessoais).

As dívidas trabalhistas dos principais clubes brasileiros superam DOIS BILHÕES de reais. Isso mesmo, dois bilhões. Entre impostos e outras dívidas, os clubes devem mais de seis bilhões.

Grande parte deste dinheiro é teu. É nosso. São dívidas com os cofres públicos. E ninguém faz nada. Só querem saber de vitórias e títulos.

É como se dentro de uma casa pai, mãe e filhos quisessem só gastar em festas e fazer festas, sem nenhuma preocupação com alimentação, estudos e o uso responsável do dinheiro. Que família daria certo agindo assim?

Vou repetir. Dois bilhões em dívidas trabalhistas.

Eu teria feito o que Gustavo Scarpa fez? Não. Parece ingratidão? Sim. Mas eu também não sei os detalhes do que passou este rapaz no clube. O que sabemos é que ele não recebia o que o clube deveria pagá-lo. Será que ele é mesmo o grande vilão?

E os torcedores do Fluminense que xingam Scarpa e os santistas que xingam Lucas Lima deveriam estar se perguntando, na verdade, quem são os verdadeiros responsáveis pelo que aconteceu.

Deveriam estar cobrando dirigentes, em vez de estar votando neles e colocando esses caras como nossos representantes no Congresso. Que tipo de gente passa a mão na cabeça de dirigente que leva cocaína para lá e para cá em helicóptero em troca de alguns títulos?

Vocês acham mesmo que a Premier League é o que é e o nosso futebol é o que é porque a Inglaterra é rica e o Brasil é pobre?

Enquanto o torcedor, essa peça tão fundamental da equação, continuar se eximindo de suas responsabilidades e atirando flechas nos alvos errados, os clubes continuarão ladeira abaixo. E quem parece ser a exceção (e digo "parece" porque já tenho anos demais e cabelos de menos para acreditar em contos de fadas) atropela a concorrência, como o Palmeiras vem fazendo.

 

 

Sobre o Autor

Julio Gomes é jornalista esportivo desde que nasceu. Mas ganha para isso desde 1998, quando começou a carreira no UOL, onde foi editor de Esporte e trabalhou até 2003. Viveu por mais de 5 anos na Europa - a maior parte do tempo em Madrid, mas também em Londres, Paris e Lisboa. Neste período, estudou, foi correspondente da TV e Rádio Bandeirantes e comentarista do Canal+ espanhol, entre outras publicações europeias. Após a volta para a terrinha natal, foi editor-chefe de mídias digitais e comentarista da ESPN e também editor-chefe da BBC Brasil. Já cobriu cinco Copas do Mundo e, desde 2013, está de volta à primeira das casas.

Sobre o Blog

Este blog fala (muito) de futebol, mas também se aventura em outros esportes e gosta de divagar sobre a vida em nossa e outras sociedades.