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Julio Gomes

Vaias, pancadão e trânsito: uma tarde de sol em um jogo da NFL

Julio Gomes

09/10/2017 10h31

"Bring one more!"

"Bring one more!"

Enquanto Jay Cutler fazia um passe patético atrás do outro, tomava uma decisão errada atrás da outra, a torcida do Miami Dolphins vaiava. Vaiava em alto e bom som, ajudada pela acústica do estádio, que melhorou muito quando foi construída uma belíssima cobertura, no ano passado.

"Tragam mais um, tragam mais um".

O que eles querem é um novo quarterback.

Se você não é nem um pouquinho familiar com o futebol americano e a NFL, algumas coisas que escreverei aqui parecerão sem sentido. Se você é tão fanático que já foi a vários jogos da NFL, não verá muitas novidades. Mas o futebol americano só cresce no Brasil e este escriba está passando duas semanas de férias com a família aqui na terra de Trump. No checklist da vida, faltava riscar "um jogo da NFL". E o risquinho veio no domingo.

O jogo era entre Miami Dolphins e Tennessee Titans. Dois times médios, que podem fazer uma boa temporada se tudo der certo ou uma péssima se der errado. Por enquanto, está dando errado.

O quarterback é o lançador, o cérebro do time, o comandante ofensivo. O Miami tem um titular chamado Ryan Tannehill, que precisou operar o joelho antes de começar a temporada e só volta no ano que vem. Não que Tannehill seja essa coca-cola toda, mas é um quarterback decente, até.

Sem ele, a franquia foi atrás de Jay Cutler (este com a bola nas mãos, no lado direito da foto acima). Ex-quarterback do Chicago Bears, 34 anos, que já havia anunciado a aposentadoria. Está recebendo 10 milhões de dólares para jogar por um ano.

Por que ir atrás de um grossão como Cutler (me perdoem os defensores, Cutler é indefensável)? Estava livre no mercado, por exemplo, Colin Kaepernick, ex-jogador do San Francisco 49ers e que iniciou a onda de protestos durante o hino nacional americano, para denunciar as injustiças e desigualdades da América atual. Kaepernick está nitidamente sendo boicotado pela liga. Está sem emprego por se posicionar. É um país dividido, fraturado, e isso é visível para onde quer que você olhe aqui nos Estados Unidos.

No aeroporto de Washington, cidade linda que eu não conhecia, uma lojinha vendia camisas com o rosto do ex-presidente Barack Obama. "Miss me now?", pergunta o Obama da camiseta. "E aí, já está com saudades?". Quase comprei a camiseta. O mundo inteiro está com saudades de Obama, exceto alguns fanáticos de verdade ou políticos de internet.

A pergunta "miss me now?" poderia vir acompanhada de uma camiseta com o rosto de Tannehill aqui em Miami. Antes contestado, agora o quarterback dos Dolphins virou craque. Nada como um tempo sem atuar, com alguém pior do que você te substituindo.

"Bring one more", clamava a torcida. Tragam mais um quarterback. Com Cutler, não dá.

O jogo foi tecnicamente horroroso. O Tennessee Titans também jogava sem seu quarterback titular, Marcus Mariota, que está lesionado. Mais um time que poderia assinar com Kaepernick, mas prefere usar um reserva fraco e inexpressivo.

No total, Miami conseguiu 178 jardas ofensivas. Tennessee somou 188. Os dois times juntos ganharam 366 jardas. Geralmente, essa marca é superada por apenas um dos times em um jogo qualquer da NFL. Foi um duelo dominado pelas duas defesas, especialmente pela fragilidade dos ataques.

Quando as vaias a Cutler se intensificaram, já na parte final, ele conseguiu liderar uma campanha e dar um passe para touchdown de Jarvis Landry, que acabou definindo o jogo e a vitória dos Dolphins por 16 a 10.

Eu comecei a procurar ingressos para o jogo semanas antes de viajar para os Estados Unidos. Eles rondavam na casa de 60 dólares para a arquibancada superior, na casa de 120 para a inferior. Acabei comprando o ingresso, de fato, três horas antes do jogo. Já estavam na casa de 20 dólares para ficar lá em cima. Paguei 45 para ficar na parte de baixo, mais perto do campo. Como está fazendo muito calor (ninguém merece ficar sob o sol da 1 da tarde), os Dolphins começaram mal, e a torcida de Miami já não é muito conhecida por lotar o estádio, a proximidade com a hora do jogo me ajudou.

Infelizmente, ignorei a venda de ingressos pela internet para estacionar o carro. Custava 26 dólares, achei caro. Não sabia que pagando na hora sairia por 40 dólares. Meu irmão, que mora aqui há mais de duas décadas, mas nunca havia ido a um jogo dos Dolphins (prefere o Miami Heat e a NBA), brincou com a moça que vendia a entrada para o estacionamento. "É um assalto legalizado". Ela sorriu e concordou.

Como assim, 40 dólares para parar o carro? É um escândalo. Mas um escândalo inevitável. Não há transporte público (aliás, o trânsito para chegar e, principalmente, sair, é um negócio surreal. Organização zero por parte das autoridades). Não há outra maneira de chegar ao estádio que não seja de carro. E há o monopólio do estádio para vagas de estacionamento. O capitalismo tem vantagens e desvantagens. Mas o capitalismo de monopólios é uma tragédia. Se fosse no Brasil, haveria um monte de gente oferecendo vagas de garagem na vizinhança. Aqui, ou se paga 40 dólares para o dono do estádio para parar o carro ou não tem como ir ao jogo.

O estacionamento é um capítulo à parte. As pessoas se reúnem antes dos jogos para as tais "tail gate parties". Fazem churrasco, enchem a cara, se divertem. O som fica no talo e se mistura, pois cada um ouve um tipo de música com poucos metros de separação. São pancadões mesmo. Comprei um hot dog e comprei uma cerveja ali em uma barraca maiorzinha. Foi bem mais barato do que seria dentro do estádio, onde os preços são abusivos. Mas me senti meio otário. Depois reparei que estavam todos se servindo ali à vontade. Claro, eu era apenas um bicão passando por ali. Justo. O clique abaixo é de quando a festa já havia acabado, nos instantes finais da partida. Algumas pessoas vão mesmo sem ingresso e ficam acompanhando pela TV.

Perdi o começo do jogo, pois não sabia que era proibido entrar com mochila. Medo do terrorismo. Não pude levar minha máquina fotográfica, era necessário deixar a mochila em um trailler ali no estacionamento.

De fato, ver o jogo mais perto do campo é interessante. Você tem uma noção bacana da velocidade e da intensidade das trombadas. Fica perto também dos reservas e staff de treinadores, que ficam na lateral do campo. O elenco de um time de futebol americano tem 53 jogadores.

Pude perceber quando Landry, que acabaria sendo o herói da vitória, pegou um bom passe e logo foi tirado de campo antes da jogada seguinte dos Dolphins. Isso é recorrente na NFL, jogadores são trocados aos montes entre uma jogada e outra. Flagrei Landry saindo de campo cuspindo marimbondos para o coordenador ofensivo dos Dolphins. Precisou ser tranquilizado por outros três companheiros. Na jogada seguinte, voltou a campo ainda xingando o técnico. Não sei se isso acontece toda hora, mas a TV não mostra.

No jogo de futebol americano, a principal importância da torcida é fazer barulho quando o time adversário está no ataque. Atrapalha a comunicação. E isso a torcida dos Dolphins fez. Basta gritar, bater a mão no banco ou então ficar balançando um sininho, como fazia minha vizinha de arquibancada. Eu sabia sobre a barulheira. Mas foi legal ter a noção de que o barulho é alto de verdade. É impossível para os jogadores se comunicarem no campo. É isso que faz jogar em casa ser mais importante na NFL do que em outras ligas e esportes.

 

Mas a maior manifestação da arquibancada mesmo veio quando, em uma das milhões de pausas do jogo, o telão mostrou uma mãe com dois filhos, recebendo uma mensagem em vídeo do pai, que estava com o exército em algum lugar do mundo. De repente, o rapaz apareceu no campo de surpresa, abraçou os filhos, a mãe desatou a chorar. Eu, como pai, me emocionei. Difícil imaginar a dor de se separar dos filhos sem saber se vai voltar para casa.

O estádio aplaudiu de pé e começarem os gritos de USA, USA, USA. Esse sentimento de patriotismo e de serem responsáveis por salvar o mundo de homens maus é o (único) laço que une americanos hoje em dia. Eu acho que patriotismo é outra coisa. E que homens são bons ou maus dependendo do ponto de vista. Mas isso é papo para outro dia.

Os Dolphins ganharam seu primeiro jogo em Miami na temporada – o da rodada inicial foi adiado, pela passagem do furacão Irma. Todo mundo saiu feliz do estádio. Mas, com Jay Cutler na área, a felicidade do meu amigo Paulo Antunes, o torcedor número 1 dos Dolphins no Brasil, não vai longe.

O blog seguirá intermitente por mais uma semana. Vou lá fritar um pouquinho na praia e já volto.

 

Sobre o Autor

Julio Gomes é jornalista esportivo desde que nasceu. Mas ganha para isso desde 1998, quando começou a carreira no UOL, onde foi editor de Esporte e trabalhou até 2003. Viveu por mais de 5 anos na Europa - a maior parte do tempo em Madrid, mas também em Londres, Paris e Lisboa. Neste período, estudou, foi correspondente da TV e Rádio Bandeirantes e comentarista do Canal+ espanhol, entre outras publicações europeias. Após a volta para a terrinha natal, foi editor-chefe de mídias digitais e comentarista da ESPN e também editor-chefe da BBC Brasil. Já cobriu cinco Copas do Mundo e, desde 2013, está de volta à primeira das casas.

Sobre o Blog

Este blog fala (muito) de futebol, mas também se aventura em outros esportes e gosta de divagar sobre a vida em nossa e outras sociedades.