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Julio Gomes

O segredo de Zidane para levar o Real da humilhação ao Mundial em um ano

Julio Gomes

18/12/2016 10h57

Com a vitória dramática na prorrogação por 4 a 2 sobre o Kashima Antlers, neste domingo, no Japão, o Real Madrid tornou-se o primeiro a conquistar cinco títulos mundiais. Nada estranho para o clube mais vitorioso da história. Ainda assim, incrível imaginar, 13 meses atrás, que tudo isso aconteceria.

Em novembro do ano passado, o Real Madrid levava 4 a 0 do Barcelona em pleno Santiago Bernabéu, mais uma humilhação em casa para o maior rival. Poucos meses após a inexplicável demissão de Carlo Ancelotti e a contestada contratação de Rafael Benítez, o técnico já balançava. Caiu 45 dias depois, com o time em terceiro lugar no campeonato.

Zinedine Zidane assumiu em 4 de janeiro. Em menos de um ano, levou o Real Madrid ao título da Champions League, o Mundial da Fifa e estabeleceu a maior sequência sem derrotas da história do clube – já são 37 jogos sem perder, somadas todas as competições.

É preciso bater palmas de pé para o Kashima Antlers, que foi melhor do que o Real Madrid durante todo o jogo e não se limitou a uma retranca, como vêm fazendo os times sul-americanos de uns 15 anos para cá. O Real foi beneficiado pelo árbitro, que afinou quando ia expulsar Sergio Ramos no segundo tempo. Levou sufoco nos minutos finais do jogo e levou bola no travessão na prorrogação. Mas aí Cristiano Ronaldo decidiu – apesar dos três gols dele, foi Benzema o melhor em campo. O mesmo Benzema que muitos na imprensa de Madri queriam ver no banco – preferem o "local" Morata.

2016 foi o ano em que o futebol ficou de pernas para o ar. Teve Leicester, Portugal, Palmeiras e Grêmio quebrando longos jejuns por aqui, seleção olímpica. Só não teve zebra mesmo para os lados do Real Madrid. Nos pênaltis, na Champions, e na prorrogação, no Mundial, o clube mais vencedor de todos os tempos fez valer a máxima do "no fim, o grande sempre ganha". A sorte não para de sorrir para Zinedine Zidane. Mas a sorte também precisa ser merecida, não cai no colo de qualquer um.

Zidane não tinha experiência alguma como técnico. Foi alçado à condição em janeiro muito mais como um recurso de defesa do presidente Florentino Pérez, como contei neste mesmo blog à época. Vaiado pelas arquibancadas, Pérez se blindou chamando um dos maiores ídolos do clube, que, quando jogador, era a encarnação do jeito de ser madridista em campo.

Poderia ter dado muito errado. Poderia ter jogado um ídolo na fogueira. Deu certo. Muito certo. A lenda só aumenta.

Costumo dizer que não há um modelo ideal de técnico de futebol, que sirva para qualquer situação. Há diferentes situações, que exigem mais ou menos do cardápio de qualidades e virtudes de treinadores. Às vezes, o melhor que um técnico pode aportar a um clube é sua capacidade de entender e atacar o mercado. Às vezes, conhecimentos tático, técnico e físico. Muitas vezes, a capacidade de motivar jogadores.

No caso dos gigantes clubes europeus, com elencos estrelares, e especificamente no caso do Real Madrid, creio que a principal virtude de um técnico é saber fazer os jogadores estarem felizes e comprometidos. São craques em todas as posições, gente de países diferentes, culturas diferentes. Não é necessário inventar rodas taticamente. O Real Madrid passará a temporada inteira ganhando jogos antes até de entrar em campo.

Não estou aqui falando que qualquer um pode ser técnico lá e que não é preciso conhecer tática, métodos de treinamento, etc. Estou falando que o que Zidane trouxe, como técnico, é o mais importante que um técnico pode trazer a um clube com essas características.

O francês trouxe calma ao ambiente, diálogo. Trouxe simplicidade, não complicações. Ele foi jogador até outro dia, sabe o que os caras querem e precisam. Sabe a linguagem necessária para motivar e formar um grupo unido e coeso. Sabe como dar bronca, como valorizar, como massagear egos – e em vários idiomas.

A característica de Zidane no comando não é a de "paizão", como gostam de atuar os treinadores brasileiros de uma ou duas gerações atrás. Estrelas do futebol mundial não querem um paizão e nem treinadores que deem pitis na beira do campo ou mandem recadinhos em entrevistas coletivas. Zidane é um colega, um cara que entende o que eles sentem e passam, porque também era uma superestrela.

Empatia é a palavra chave aqui.

Quando um gênio, com toda essa história na bagagem e um jeito calmo e comedido de falar resolve te chamar para uma conversa…. você ouve!

E aí, claro, entra a parte tática – que o cara não precisa resolver sozinho, pois há uma equipe de trabalho.

Nos melhores anos de Zidane no Real Madrid, que desembocaram no título da Champions de 2002, havia uma carregador de piano que limpava a barra para todo mundo. Chamava-se Claude Makélélé. No fim da temporada 2003, Florentino Pérez não só dispensou Vicente del Bosque, amado pelos jogadores, como não valorizou Makélélé, que se mandou para o Chelsea.

Zidane sabe bem que ali foi o começo do fim da era "galáctica". Um craque sabe muito bem valorizar quem faz o trabalho sujo para ele.

Quase dois meses após a estreia como técnico, em fevereiro, Zidane perdeu no Bernabéu o dérbi para o Atlético de Madri. E, a partir daquele jogo, Casemiro virou titular do time. As características são diferentes, mas ele encontrou ali o seu Makélélé. Um jogador para trazer equilíbrio a um time cheio de gente capaz de desequilibrar na frente.

Isso já estava nos planos de Benítez. E Ancelotti já fazia isso com Xabi Alonso em 2014. Não foi uma genialidade de Zidane, mas ele foi humilde para realizar o ajuste após o mau início.

Três meses após a estreia, veio a vitória sobre o Barcelona, no Camp Nou – eram 39 jogos de invencibilidade dos catalães, recorde histórico do futebol espanhol que está com pinta de cair em breve. Logo depois, a derrota por 2 a 0 para o Wolfsburg nas quartas de final da Champions – seria a última de Zidane, em 6 de abril. Desde então, nove meses sem derrotas. Os 3 a 0 para cima dos alemães logo depois e a classificação no jogo de volta acabaram por consolidar Zidane no cargo. Viria, então, a "undécima" e, agora, o "Mundialito", como eles chamam lá.

Zidane fez o arroz com feijão tático. Com Casemiro, a defesa fica mais segura, o jogo aéreo ganha força, Modric e Kroos ganham liberdade, a ligação fica mais fluida com o trio de ataque. E fez o arroz com feijão também no vestiário, trazendo as estrelas de volta a um ambiente de comprometimento com a instituição.

O Real Madrid de Zidane sofre muitas vezes, como sofreu contra o Kashima Antlers. Precisou da sorte em muitos momentos, precisou de pênaltis para ganhar a Champions, encontrou gols milagrosos em minutos derradeiros. Zidane ainda parece ter um longo caminho tático a percorrer. Na decisão do Mundial, por exemplo, quando se viu 1-2 abaixo, adiantou o posicionamento de Marcelo – nada mais ousado foi feito para buscar o resultado. Mas, para variar, ele veio.

Quando eu morava em Madri, no fim de cada ano minha esposa recebia da empresa em que trabalhava uma peça de jamón ibérico. O tal "pata negra", o melhor presunto cru do mundo, uma coisa espetacular. Íamos ao mercado municipal, entregávamos o jamón e ele voltava fatiado e embalado a vácuo. Dava para o ano inteiro. Mas a cereja do bolo era um saquinho que o cara do mercado me entregava com os ossos.

Um dia, inventei de, ao cozinhar uma feijoada, colocar alguns dos ossos durante o cozimento. Eu apelidei de "feijoada ibérica". Era, sem dúvida, a melhor coisa que eu fazia na cozinha. Um desbunde.

Fazer arroz com feijão não é difícil. E quando você tem nas mãos ingredientes espetaculares, até um básico arroz com feijão, se bem conduzido, torna-se um prato para lá de maravilhoso.

2016 foi um ano triste para muita gente. Um ano horroroso em muitos aspectos. Para o torcedor do Real Madrid, porém, foi só de alegrias. O Real de Zidane não brilha como poderia, mas vence como deveria.

 

Sobre o Autor

Julio Gomes é jornalista esportivo desde que nasceu. Mas ganha para isso desde 1998, quando começou a carreira no UOL, onde foi editor de Esporte e trabalhou até 2003. Viveu por mais de 5 anos na Europa - a maior parte do tempo em Madrid, mas também em Londres, Paris e Lisboa. Neste período, estudou, foi correspondente da TV e Rádio Bandeirantes e comentarista do Canal+ espanhol, entre outras publicações europeias. Após a volta para a terrinha natal, foi editor-chefe de mídias digitais e comentarista da ESPN e também editor-chefe da BBC Brasil. Já cobriu cinco Copas do Mundo e, desde 2013, está de volta à primeira das casas.

Sobre o Blog

Este blog fala (muito) de futebol, mas também se aventura em outros esportes e gosta de divagar sobre a vida em nossa e outras sociedades.