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Julio Gomes

Como o Atlético de Madri mudou de 2014 para cá

Julio Gomes

27/05/2016 07h00

O Atlético de Madri deveria ter sido campeão da Champions League em 2014. Pelo jogo que fez em Lisboa, a coragem, a torcida, a campanha. Mas não foi. Levou gol nos acréscimos, apagou na prorrogação e parecia ter perdido ali uma chance que só viria 40 anos depois.

Eu já vi muita torcida derrotada após uma final. Cada uma reage de um jeito. Naquele dia, em Portugal, os atléticos tinham estampada na testa a tristeza estilo "nunca mais teremos essa chance".

Só que ela veio dois anos depois.

O novo duelo contra o maior rival, o Real Madrid, é a ocasião que todos os atléticos pediram após a tragédia de Lisboa. "Nenhum torcedor do Atlético trocaria o rival da decisão", declarou Fernando Torres. "É o jogo das nossas vidas. O futebol nos deu outra oportunidade", falou Juanfran. Eles dão o tom do tamanho do sentimento de revanche.

Não apenas pela revanche. Mas pela tal nova oportunidade. Coisas que poucos têm na vida, em qualquer esporte ou setor.

Três fatores fazem deste Atlético 2016 um time diferente (e melhor). Físico, técnico e psicológico.

Fisicamente inteiro

Fisicamente, aquele time de 2014 estava esgotado. Havia sido uma temporada de desgaste anormal para o grupo de jogadores, pouco habituados à maratona pela qual o Atlético havia sido submetido.

O time havia sido campeão espanhol somente uma semana antes da final da Champions, sem tempo de descanso. Um título que não vinha havia 18 anos e que exigiu que todos os titulares jogassem todos os minutos possíveis de todos os jogos. Arda Turan não pôde jogar a final de Lisboa, Diego Costa saiu com 8 minutos de jogo, Juanfran atuou a prorrogação lesionado.

Nas últimas três rodadas do Espanhol, o Atlético perdeu para o Levante e empatou com o Malága, dando claros sinais de estafa física. Ainda assim chegou líder à última rodada e ficou com o título com o empate contra o Barcelona.

A final contra o Real Madrid foi, logicamente, para lá de intensa. Quando Sergio Ramos empata, nos acréscimos, todos sabiam que não haveria jogo na prorrogação. O Atlético não tinha mais pernas nem oxigênio.

Desta vez, o cenário é diferente. Foram duas semanas de intervalo entre a última rodada da liga doméstica e a final. E o time não dá os mesmos sinais de cansaço, até porque se habituou a jogar mais partidas ao longo da temporada e fez algumas necessárias rotações. Fisicamente, o Atlético está mais inteiro.

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Qualidade técnica

O segundo fator de diferença é o técnico. O atual time do Atlético tem mais qualidade do que o de 2014, uma mudança conceitual buscada por Simeone ao perceber que, para ir além (ganhar a Champions), uma defesa ultrasólida não seria suficiente.

O time que jogou a final de 2014 tinha a defesa formada por Courtois, Juanfran, Godín, Miranda e Filipe Luís. À frente deles, Koke e Gabi no meio de campo. Esta coluna vertebral se mantém. Oblak é um goleiraço, não muito abaixo de Courtois. Giménez e Savic (há uma dúvida aqui sobre quem estará ao lado de Godín) não têm a mesma bagagem de Miranda. É uma perda. Mas minimizada pelo fato de os outros jogadores serem todos os mesmos.

Não são os nomes, mas o sistema. É por ele, somado ao espírito e à capacidade de concentração durante 100% do tempo, que o Atlético é o time que leva menos gols na Europa.

Do meio para frente, no entanto, os nomes mudaram. E o estilo mudou.

O ataque de 2014 era formado por Diego Costa e Villa. O de 2016, por Griezmann e Fernando Torres. Villa já vivia os momentos finais de carreira. não tinha a velocidade de antes. O Griezmann de hoje é um atacante muito mais perigoso, fundamental nas tarefas defensivas e no primeiro combate, muito rápido, capaz de criar problemas pelos lados do campo e com faro de gol. Torres vivia um final de carreira deprimente, mas renasceu este ano. É um centroavante mais técnico, inteligente e experiente do que Diego Costa e mesmo Mandzukic, que foi o titular na temporada passada.

Na campanha de 2014, Arda Turán era um nome importante da articulação. Mas ele não jogou a final. Tiago e Raúl García acompanhavam Koke e Gabi no meio de campo, dando uma característica defensiva e de pegada ao time. Hoje, o meio do Atlético tem Saúl e Carrasco, dois jogadores técnicos, de velocidade e ótima qualidade de passe. Saúl cresce a cada jogo e foi o autor da pintura contra o Bayern no jogo de ida das semifinais, enquanto Carrasco mudou a dinâmica do jogo da classificação, em Munique.

Talvez Simeone opte por Augusto Fernández ou até o recuperado Tiago, e não Carrasco, desde o início. Isso vai mostrar bem as intenções do Atlético no jogo. Fernández é um jogador mais defensivo e de proteção. Está nas prévias como o provável titular. Mas, antes de se machucar, Carrasco havia sido titular, por exemplo, na partida de ida contra o Barcelona, nas quartas de final.

Independente de quem jogue e com o crescimento de Koke, o fato é que o Atlético se sente muito mais confortável hoje com a bola do que dois anos atrás. Em 2014, o jogo defensivo era sólido, mas o ofensivo vivia mais de bolas paradas ou esticadas para Diego Costa brigar sozinho contra o mundo. Hoje, é um time que usa menos o recurso da bola longa. Joga de pé em pé, mesmo quando está pressionado no campo defensivo.

Se saísse atrás em 2014, dificilmente o Atlético teria chances de reagir contra aquele Real Madrid. Se sair atrás na final de sábado, em Milão, o Atlético é perfeitamente capaz de construir jogo e machucar o rival de outra forma que não seja contra atacando. Muito se falou em Fábregas, Thiago Alcântara. Mas o verdadeiro herdeiro de Xavi no futebol espanhol chama-se Koke. Olho nele.

Cicatrizes

Por fim, o fator psicológico. Um ano antes da final de 2014, um gol de Miranda havia dado a Copa do Rei ao Atlético sobre o Real, quebrando um tabu de 14 anos sem uma vitória sequer sobre o rival. Uma freguesia do tamanho do Parque do Retiro.

Não se sabia se era um repique, apenas. O Atlético, ali, já era um time com a mentalidade de Simeone, muito mais competitivo e sem medo. As derrotas na final de 2014 e nas quartas da Champions do ano passado, quando o Real avançou com um gol nos minutos finais de Chicharito Hernández, criaram duas cicatrizes profundas neste grupo de jogadores do Atlético.

São derrotas doídas que forjam vitórias futuras. A dor, a tristeza, são coisas pelas quais os caras não querem passar de novo. Geralmente, times campeões nascem de tragédias passadas. Ganham corpo, caráter e motivação extra.

A competitividade, a mentalidade e a capacidade de acreditar em si são as mesmas de dois anos atrás. Mas o Atlético de Madri que chega a Milão tem marcas de guerra que não tinha em 2014. E isso pode fazer toda a diferença.

 

Sobre o Autor

Julio Gomes é jornalista esportivo desde que nasceu. Mas ganha para isso desde 1998, quando começou a carreira no UOL, onde foi editor de Esporte e trabalhou até 2003. Viveu por mais de 5 anos na Europa - a maior parte do tempo em Madrid, mas também em Londres, Paris e Lisboa. Neste período, estudou, foi correspondente da TV e Rádio Bandeirantes e comentarista do Canal+ espanhol, entre outras publicações europeias. Após a volta para a terrinha natal, foi editor-chefe de mídias digitais e comentarista da ESPN e também editor-chefe da BBC Brasil. Já cobriu cinco Copas do Mundo e, desde 2013, está de volta à primeira das casas.

Sobre o Blog

Este blog fala (muito) de futebol, mas também se aventura em outros esportes e gosta de divagar sobre a vida em nossa e outras sociedades.