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Julio Gomes

Por mais Audax e audácia, pelo fim das trevas

Julio Gomes

09/05/2016 11h26

Foi em algum grupo de whatsapp que algum amigo escreveu, após a eliminação do Corinthians nos pênaltis, na semifinal do Paulistão. "Que Audax-cioso esse time, heim". Adorei o trocadilho infame. Adoro trocadilhos, infames ou não.

Há várias maneiras de se ganhar um jogo de futebol. Esta é uma frase batida, mas absolutamente verdadeira. Às vezes, utilizada para elogiar um time cheio de espírito de luta. Às vezes, para menosprezar quem tenta propor jogo e acaba perdendo campeonatos.

Uma dessas maneiras de se ganhar um jogo de futebol ganhou contornos históricos na Europa nos últimos 10 anos. A versão moderna, que mistura futebol total, recuperação, participação, posse de bola e técnica, ganhou o apelido de tiki taka por um já falecido narrador espanhol. Partiu de Barcelona, tornou-se sublime nos anos de Guardiola no comando catalão. Ganhou a Europa.

Poucos são os grandes times ou seleções europeias que não utilizem muitos destes elementos de jogo. E já há algum tempo.

O que me surpreende no Brasil não é ver o que o Audax faz. É ver o que os outros não fazem.

Muitos são os técnicos brasileiros que foram fazer "estágio" na Europa ultimamente. Poucos aplicaram os elementos que viram. Trouxeram selfies e pouco mais.

O Santos foi campeão paulista jogando como um time pequeno em seu próprio estádio. Dominado em todas as facetas do jogo por atletas desconhecidos, de uma camisa desconhecida, de um nome desconhecido.

Ganhou o título por um contra ataque bem sucedido. Naturalmente, tem jogadores de melhor refinamento técnico e poder de decisão. Não acho isso humilhante. Na verdade, é necessário ter humildade para aceitar a inferioridade no próprio estádio e buscar a vitória de outro jeito. Aplaudo o discurso de Dorival Júnior, admitindo a superioridade do rival com a medalha no peito. Assim como aplaudo os aplausos dos jogadores santistas enquanto os do Audax eram premiados no pódio. Nos acostumamos a ver outro tipo de atitude.

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Mas eu não sou muito preso a resultados. Assistindo à final paulista, fiquei me perguntando por que ninguém mais faz o que o Audax faz no futebol brasileiro. Fiquei imaginando como seria interessante vermos camisas pesadas jogando esse futebol leve.

Sim, há alguns elementos da evolução dos últimos 10 anos do futebol mundial que são aplicados aqui. Como a pressão defensiva exercida por atacantes, o fechamento de espaços, etc. Tite e Mano aplicaram algumas coisas no Corinthians dos últimos anos. Há exemplos pontuais aqui e ali.

Mas ninguém aplicou o tiki taka em sua essência, como o Audax.

Por que?

Ouvimos por décadas Galvão Bueno bradar uma mentirosa expressão: "Eeeeeeesse é o futebol brasileiro".

Uma pena que Galvão não tenha narrado jogos do Audax. Finalmente a frase deixaria de brigar com as imagens.

Se este é o verdadeiro futebol brasileiro (melhorado). E se hoje há a possibilidade de vermos tudo o que está sendo feito no futebol dos quatro cantos do mundo pela TV, com a devida facilidade de plágio. Por que ninguém mais faz?

Talvez a explicação esteja em algo que eu falo há tempos. O brasileiro não gosta exatamente do jogo futebol. Ele gosta é de ganhar. E não importa como.

O desdobramento deste fato é o medo dos treinadores, diretamente ligado ao amadorismo dos dirigentes esportivos. Dirigentes, raríssimas exceções, não passam de torcedores com o poder decisório em mãos.

Torcedores ficam felizes quando o time ganha, ficam p da vida quando perde. A coisa não vai muito além disso. E esta forma binária e passional de encarar o futebol, além do total desprezo pelas finanças de "empresas" que não são suas, tem como resultado dirigentes mandando treinadores embora todas as semanas.

Eu compreendo, pois, que treinadores tenham medo de colocar em prática algo como Fernando Diniz faz. Pois eles sabem que precisam de tempo para isso. Anos, não semanas.

Alguns honestamente gostariam de fazê-lo, mas consideram incompatível com a forma como funciona o futebol no Brasil. E alguns (muitos), não nos enganemos, se escondem e se aproveitam deste círculo vicioso. Eles simplesmente não conseguiriam construir o que foi construído no Audax e se escondem no discurso de vítimas da falta de tempo e condições de trabalho.

cordabamba

Com dirigentes-torcedores e treinadores medrosos ou encurralados, que se sentem na corda bamba o tempo todo (porque estão), o futebol brasileiro continua nas trevas. Com um raio de luz aqui e ali.

Adoraria achar que o exemplo do Audax será seguido. Ele precisa ser seguido por algum, por alguns. Não é o único jeito de jogar futebol. Mas não é possível que não haja espaço para uns três times grandes do país fazerem isso, independente dos resultados.

Por mais Audax. Por mais audácia. Por menos arroz com feijão e futebol de resultados.

 

Sobre o Autor

Julio Gomes é jornalista esportivo desde que nasceu. Mas ganha para isso desde 1998, quando começou a carreira no UOL, onde foi editor de Esporte e trabalhou até 2003. Viveu por mais de 5 anos na Europa - a maior parte do tempo em Madrid, mas também em Londres, Paris e Lisboa. Neste período, estudou, foi correspondente da TV e Rádio Bandeirantes e comentarista do Canal+ espanhol, entre outras publicações europeias. Após a volta para a terrinha natal, foi editor-chefe de mídias digitais e comentarista da ESPN e também editor-chefe da BBC Brasil. Já cobriu cinco Copas do Mundo e, desde 2013, está de volta à primeira das casas.

Sobre o Blog

Este blog fala (muito) de futebol, mas também se aventura em outros esportes e gosta de divagar sobre a vida em nossa e outras sociedades.