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Julio Gomes

As fichas do Pet e 16 horas de poker, o esporte mais democrático do planeta

Julio Gomes

01/02/2016 23h08

"Xi, rapaz. Olha lá, é o Pet". "Oi Pet, beleza? Posso tirar uma foto?". "Olha o Pet ali". "Parece que ele joga bem…"

Não deve ser fácil ser o Petkovic jogador de poker (escreverei poker, não pôquer, já aviso, porque simplesmente todo mundo escreve poker assim e às vezes é besteira ir contra a maré por grafismo). Não deve ser fácil. É claro que o cara está acostumado com a turma falando o nome dele. Era jogador de futebol, oras! Foi venerado, foi xingado.

Mas a mesa é diferente do estádio…

É exigência máxima de concentração. Todas as mãos importam. A observação da atitude de cada um, do conforto ou desconforto, as reações, a pulsação, até mesmo a pupila dilatada ou não… tudo isso importa na hora de tomar uma decisão na mesa de poker. "Olha o Pet, olha o Pet". Aquele ruído constante. É, não deve ajudar.

Petkovic estava na minha mesa na etapa 1 do BSOP, a série brasileira de poker, que tem nome em inglês para imitar a maior série do mundo, WSOP. É um torneio enorme. Foram 1359 pessoas inscritas na etapa que acaba nesta terça-feira. Em dezembro, foram 3459 inscritos. Pet era 1 dos 1359 desta vez. Eu era outro. Caímos na mesma mesa.

Eu já devo ter falado ou escrito alguma coisa do Pet jogador. Acho que estava de plantão quando ele fez aquele gol inesquecível de falta, dando um título no último minuto ao Flamengo. Mas eu não sabia nada do Pet jogador de poker. Nada. Bom, ele não sabia nada também sobre mim.

Pego o celular. Mando mensagem para um amigo no whatsapp. "Tente descobrir como o Pet joga!"

Não precisou da resposta. Logo Pet faz uma aposta. Um camarada entra na mão. Na mesa, as apostas sucedem as cartas. O board mostra J75. Depois 8. Depois 7. Petkovic tinha 7 e 5 na mão. Fez um full house. O camarada tinha 7 e 8. Fez um full maior. E nosso colega famoso de mesa perdeu fichas pra caramba. "Bom, o cara abre com 7 e 5 na mão, pensei eu".

Para você aí, que não joga poker, podemos dizer que a jogada dele foi para lá de discutível. E depois o baralho não ajudou. Logo, começou a reclamar da sorte.

Mais tarde eu, que estava tomando uma paulada atrás da outra, vim com um par de reis na mão. Apostei. Somente Petkovic pagou. Segui apostando e ele largou a mão. Foi meu primeiro pote de fichas puxado no torneio. Justo contra o Pet. Brinquei na mesa. Fiz aquele gesto com as mãos que os jogadores fazem quando metem um gol após tanto tempo sem marcar. "Sai zica! Sai nhaca!". Todos riram. Pet, não. Acho que não gostou de ter perdido o pote.

photo (4)Xetexentos, diz o sérvio mais brasileiro do mundo. Quatrocentos? Pergunta o dealer. Não, xetexentos. Ah, setecentos. É, Pet. Morei tanto tempo na Espanha. Dava "buenos días" e logo me perguntavam de onde eu era. Ficava P da vida, mas o sotaque é algo que sempre teremos.

Não sei se Pet se classificou para o dia seguinte – esses torneios são jogados em vários dias. Eu avancei.

Mudei de mesa várias vezes, pois é assim que funciona, vão te remanejando conforme os jogadores vão sendo eliminados. Em um torneio de poker, todos, eu disse TODOS, recebem o mesmo número de fichas. Eu, o Pet, o Ronaldo e o Papa, tanto faz. Quem acabar com todas as fichas de todo mundo é o campeão. Quem ficar sem fichas, está eliminado.

Logo caí do lado de um garotão quieto, de uns 20 e poucos anos, que não falava nada e fumava um daqueles cigarros eletrônicos. Não tinha pinta de brasileiro. "De donde eres?", soltei. "Bolívia". Uau. "Hablas bien el español", me disse. "Putz, só te perguntei de onde você era". "Sí, sí, pero hablas bien". Ninguém aqui fala espanhol, continuou.

Tive vergonha. Somos um país de costas para nossos vizinhos. Idiomas tão parecidos, mas não nos importamos com o deles.

Veio só para jogar?, perguntei. Sim. Eu e alguns amigos viemos de La Paz para jogar.

Os caras vieram da Bolívia jogar poker em São Paulo. Gastaram com hotel, hospedagem, transporte. Lá, os clubes são clandestinos. Só conseguem jogar na Internet. Para jogar torneios bacanas ao vivo, precisam viajar.

Mais vergonha tive em outra mesa, quando vêm à tona o caso da brasileira que ganhou 1 milhão de dólares em uma mesa na Internet e precisou da ajuda do marido pelo telefone. É uma modalidade de mesa pequena, com 3 jogadores. Você paga 50 centavos de dólar e logo antes de começar há uma espécie de roleta que define a premiação. Geralmente, dá 1 dólar. Às vezes, 2. Para ela, deu 1 milhão. E ela ganhou.

"Agora, vocês acreditam que ela declarou tudo na Receita Federal?? Pagou imposto e tudo!", disse o cabra, não revelarei de onde era, não estou aqui para expor ninguém.

Ficou aquele silêncio. Um outro, do Rio, diz. "Bom, o cara pagou imposto e ficou com 700 mil limpinhos para fazer o que quiser". "Imagina! Nunca! Eu abriria uma empresa só para limpar esse dinheiro", disse o revoltado, que não era online. Resolvo me meter no assunto. "Bom, me parece que ele fez a coisa certa, não? Não sei se ladrão roubar ladrão é a melhor alternativa…". O jovem ao meu lado concorda com a cabeça. Silêncio. Mas o homem não perdeu o rebolado. "Acho que eu deixava o dinheiro todinho lá no Pokerstars e torrava o um milhão inteiro jogando!". E riu alto. Todos rimos. Próxima mão.

Outro não jogava uma mão sequer. De repente, tira o fone do ouvido. "Tava ouvindo o jogo. Ufa. Palmeiras ganhou, 2 a 0". E eu que achava que ele estava escutando alguma música para relaxar.

O tiozão de Porto Alegre me encontra pelo salão, quando já estávamos perto da premiação. "Ô garoto! Ainda bem que eu dei sorte contra você naquela mão, heim. Vai dar para pegar um cascalho, tenho que te dar uma comissão!".

Como esquecer daquela mão? Umas três horas já tinham se passado. Eu tinha dado uma roubada nele antes. E aí vim com Ás e Dama de paus. No poker, rotulamos essa mão como AQs (o S de suited, cartas do mesmo naipe). Aposto. Ele paga. O dealer mostra AQ4. Eu aposto. Ele aumenta. Eu aumento. Ele dá all in. Ou seja, "todas as minhas fichas, garotão". Eu pago, logicamente, pois tinha dois pares. Ele tinha AJ, Ás e valete. Estava perdendo de longe. Mas aí o dealer vira um rei. E depois outro rei. E acabamos empatando e dividindo as fichas.

Fiquei louco da vida. Que sorte deu esse tiozão! O amigo do lado, um loirinho com boné de surfista e a cara do Teco Padaratz comenta: "está fazendo hora extra, heim, amigo". O rapaz que chamei de surfista jogava com dois amuletos. Um rei e um cavalo, peças de xadrez. Fiquei com medo dele. Muitos enxadristas brilhantes migraram para o poker.

Quando fui eliminado, ele chegou junto comigo para pegar a premiação. Caímos ao mesmo tempo do torneio, umas quatro horas depois de termos nos encontrado. "Pô, rapaz, caiu, é?". "Caí". "Que pena, você estava com tanta ficha…". Pois é. Invariavelmente, as mãos são contadas e logo uma história triste que justifique estarmos fora da mesa. "E aí, você é de Floripa?", pergunto. "Não, do Rio Grande do Sul". Putz. Tomara que não tenha ofendido. Vai saber. "E joga xadrez?". "Não, não, só gosto mesmo e trago as peças". Putz, fiquei com medo à toa então, pensei baixinho.

Quando me encaminhava para fora da área de torneio vi o rapaz de Pato Branco, de quem tinha tomado bastante ficha com um par de reis. Muito simpático. Debatemos mãos, nossas e dos outros. Boa sorte a ele. Vi também o moço alto, forte, morenão carioca, que tinha jogado comigo no dia anterior, na mesma mesa do André Akkari, o mais famoso dos jogadores brasileiros. E vi também o rapaz da zona norte de São Paulo que fez a festa no primeiro dia, acertava tudo, eliminou uns 15 caras do torneio – só eu sobrevivi na mesa com ele. "Respeito teu jogo", ele me disse no intervalo. "Ainda bem!", pensei.

E, já no dia seguinte à minha eliminação, abri a transmissão ao vivo e vi o rapaz de Brasília que tinha exatamente as mesmas fichas que eu na mesa 9, após 16 horas de jogo. Eu caí na 192a colocação. Ele estava lá, lado ao lado com Decano, um dos brasileiros que brilharam em Las Vegas recentemente. Já estavam entre os 65 sobreviventes finais.

(atualização: o rapaz de Brasília, que tinha as mesmas fichas que eu, chegou à mesa final! clap, clap, clap. Acabou em oitavo. Na frente dele, em sétimo, terminou o "tiozão" gaúcho que não caiu antes dando aquela sorte monstro contra mim. Ele não fez uma hora extra… fez umas 30, só isso)

O poker é isso. Você pode cair na mesma mesa do famoso do futebol, do famoso da música, do famoso do bairro ou do famoso do próprio poker. O campeão mundial, para ser campeão mundial, vai entrar no torneio com as mesmas fichas com você. E vai ganhar quem for o melhor por 30, 40, 50 horas de jogo. Imagine 50 horas de jogo. E agora pense no quanto a sorte pode realmente interferir.

Pois é…

Eu não posso jogar bola com Neymar. Nem tênis com Djokovic. Nem golfe com o Tiger Woods. Nem correr de kart com o Hamilton. Mas, no poker, posso jogar com os melhores naquilo, ombro a ombro. Nada pode ser mais democrático.

"Mas Julio, quanto custa jogar esse torneio??".

Esse, especificamente, 2600 reais. Mas eu paguei 5 dólares e ganhei, através de torneios menores, o direito de jogar o grandão. É também, pois, acessível. Se você ganhar a vaga ou tiver 2600 reais para gastar, ninguém te impedirá de jogar. Não importa cor, origem, religião ou diploma.

Em São Paulo, foi uma delícia conviver com o caldeirão de sotaques, do sérvio ao alagoano, do curitibano ao belenense. Foi uma delícia ganhar uma mão do Pet. Foi uma delícia quando estourou a bolha. E foi uma pena que aquele meu QT não derrubou o AJ daquele tiozão duro no big. Senão eu ia pras cabeças… GG. Ficou pra próxima.

bsop_millionsPS – Vai ter gente contestando o título deste post. Eu chamo poker de jogo. E tem muito jogo que é esporte. Poker é esporte, não é jogo de azar. Quem duvida, cheque com o Ministério do Esporte. Enquanto se gasta tempo discutindo o indiscutível, o país se encontra nas mesas por todas as partes. Com ficha no pano. Duvida? A foto ao lado é do BSOP Millions, em São Paulo. Finalzinho do ano passado…

 

 

Sobre o Autor

Julio Gomes é jornalista esportivo desde que nasceu. Mas ganha para isso desde 1998, quando começou a carreira no UOL, onde foi editor de Esporte e trabalhou até 2003. Viveu por mais de 5 anos na Europa - a maior parte do tempo em Madrid, mas também em Londres, Paris e Lisboa. Neste período, estudou, foi correspondente da TV e Rádio Bandeirantes e comentarista do Canal+ espanhol, entre outras publicações europeias. Após a volta para a terrinha natal, foi editor-chefe de mídias digitais e comentarista da ESPN e também editor-chefe da BBC Brasil. Já cobriu cinco Copas do Mundo e, desde 2013, está de volta à primeira das casas.

Sobre o Blog

Este blog fala (muito) de futebol, mas também se aventura em outros esportes e gosta de divagar sobre a vida em nossa e outras sociedades.