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Julio Gomes

Passada a euforia, vejo o gol de Lira como o retrato da depressão

Julio Gomes

12/01/2016 13h43

Quem assiste ao Jornal Hoje diariamente vai entender. É aquele show de horror nos primeiros blocos. Denúncias de corrupção, atentado terrorista no Oriente Médio, tsunami sei lá onde, mortes nas rodovias nacionais, congelamentos em Minnesota, tufão na Malásia, alagamentos no Sul, secas no Nordeste, etc, etc, etc.

No finalzinho, aquela bela história de vida! Uma pessoa que saiu da miséria para superar tudo e abrir uma loja de empadinhas. Um surdo que passou a ouvir. Ou um belo "Tô de Férias" mostrando alguma praia linda da Paraíba.

A estratégia é conhecida. É recorrente em muitos telejornais pelo mundo. Em muitos filmes, até. É preciso acabar bem. Um final feliz. As pessoas precisam ter a esperança renovada, não podem desligar da TV pensando em suicídio.

Foi assim que me senti vendo o prêmio a Wendell Lira de melhor gol do ano.

Como se estivesse assistindo a uma história feliz do Jornal Hoje. Mas eu adquiri, infelizmente, a incapacidade de me sentir bem por mais de cinco minutos. Logo a dura realidade, a de verdade, daquelas pessoas da reportagem (e do Lira) vêm à minha mente e me assombram.

Para cada história feliz, há centenas de trágicas. Como disse o amigo Erich Beting, o futebol é muito mais cheio de Liras do que de Messis. O nosso, especialmente.

Essa é outra coisa recorrente em filmes, por sinal. Como em Davi contra Golias. Desde que o mundo é mundo, é gostoso ver o pequeno derrotar o grande. Nos dá esperança. Nos faz achar que tudo é possível (quando não, não é, sorry).

Ver aquele rapaz subir ao palco, conhecer a história de vida dele, praticamente um intruso em um meio cheio de pompa – o prêmio Fifa não tem nada a ver com o futebol real – e trazer um pouquinho dessa dura realidade para o mundo todo é reconfortante. É como ver a matéria feliz do Jornal Hoje e aquele sorrisão da Sandra Annenberg nos desejando "boa tarde".

(Nada contra o Jornal Hoje, heim. Estou apenas ilustrando)

Me emociono quando leio o amigo Menon falando do tema. Ou quando leio outro amigo, Thiago Arantes, que além de tudo é lá de Goiânia e hoje brilha na Europa.

Mas logo desço para a segunda camada. Sei lá, é um jeito de ser. Me chamem de azedo. Mas sou assim. Às vezes, me sinto como o cara que tomou a pílula vermelha (Matrix).

O prêmio a Wendell Lira pode, eu disse PODE, significar uma segunda chance a ele. TALVEZ a fama de 5 minutos represente alguma mudança importante no destino dele. E isso, por si só, já seria muito bacana.

Mas fico triste por ver como, mais uma vez, um momento pontual de alegria desviará as atenções.

wendell-lira

Porque aquele gol, aquela imagem, essa fotografia ao lado, me parece o retrato perfeito da depressão do futebol brasileiro. Nossa falência, nossa decadência, resultados de décadas de roubalheira, desmandos, descaso, alienação, soberba.

Vejamos todo o contexto.

O gol é uma pintura. O símbolo de mais um dos diamantes brutos espalhados por aí. Talento puro. Mas outras palavras podem vir depois do "puro". Talento abandonado, esquecido, escondido, desperdiçado. A crueldade da vida real do futebol, onde poucos triunfam, pouquíssimos ganham muito dinheiro e a enorme maioria está por aí, buscando migalhas. Sem emprego, sem condições, sem formação, sem receber.

Os grandes centros vêm buscar nossos jovens, desde que ainda haja margem para moldá-los a conceitos coletivos, táticos, etc. Passada uma certa idade, não servem mais, pois os vícios estão arraigados. Sobra a China.

Voltando ao gol. É feito em um estádio largado, feio, mal cuidado, mal iluminado. Goiânia ficou fora da fartura da Copa, ganhou em troca uns treinos da seleção e um amistoso antes do Mundial (as pessoas não se tocam dessas negociatas nojentas?). Então que conviva com aquele Serra, que um dia foi dourado.

O gol é feito para 300 e poucos gatos pingados. Porque essa é a realidade do futebol aqui. Quem realmente gosta do esporte? Favor não confundir "gostar de ver o clube ganhar" com gostar do esporte.

O gol foi marcado em cima de um desses clubes que não entendemos bem como fez dinheiro para chegar à Série A uns anos atrás, não entendemos por que é patrocinado por banco público, cujo atual presidente tem nome envolvido em caso de assassinato, clube apadrinhado por gente que está lá no Congresso defendendo os cartolas, não os Liras. Simbólico. (ler mais aqui)

O gol é feito em pleno campeonato estadual. Um exemplo de como o calendário nefasto e adequado a interesses arruina o futebol brasileiro.

(Eu sou um grande defensor dos campeonatos estaduais. Eles são a essência do nosso futebol vencedor. A origem. A nacionalização e o abismo financeiro estão matando tudo. É preciso resgatar os estaduais, mas não da forma perversa como querem alguns dirigentes de clubes pequenos e federações, nem da forma predatória como querem os grandes. Estaduais precisam ser disputados o ano todo, com os "grandes" de cada estado entrando lá no final, com regulamentos dinâmicos, democráticos e atraentes. É pelo futebol amador e local, financiado pela CBF, que faz milhões com a seleção principal, mas organizado e conectado com as comunidades, que passa o resgate do futebol brasileiro.)

O gol saiu em um modelo de campeonato fracassado, em um palco deprimente, contra um clube símbolo da influência política indevida e sem público. Feito por um jogador largado à própria sorte. E que possivelmente estaria desempregado, não fosse o prêmio. E que talvez esteja daqui a alguns meses, porque na real ninguém vai querer saber dele. Wendell Lira ganhou um aposto. Wendell Lira, "aquele-que-ganhou-o-prêmio-de-melhor-gol-do-ano-em-cima-do-Messi". Não ganhou garantias.

E nem ganharão garantias os milhares de Liras espalhados pelo Brasil.

Liras que só são defendidos pelo Bom Senso. Mas o status quo logo fez o Bom Senso perder força. E os torcedores de futebol são cúmplices, porque só se preocupam em ver o time campeão, e não com a lisura, as finanças, a transparência. O Bom Senso perdeu força, entre outras coisas, porque não teve o devido apoio da sociedade, das arquibancadas, dos microfones.

Eu não me conformo em ver o gol de Lira e ficar feliz porque o pequenininho ganhou, porque talvez a vida desse rapaz seja melhor daqui para a frente.

Eu seria muito, mas muito menos azedo, se visse uma reação de cima para baixo e em cadeia. Que víssemos de uma vez no gol de Lira o retrato dessa pobreza toda que virou nosso futebol. E que alguém fizesse algo para mudar tudo isso.

Lira poderia ser o símbolo da reviravolta. Não basta campanha na Internet. É de outra coisa que os Liras precisam. Mas isso só se um conjunto da obra mudar. E não parece ter muita gente a fim de mudar de verdade. Ontem foi um dia bom. De euforia. Hoje, seguimos na depressão.

 

Sobre o Autor

Julio Gomes é jornalista esportivo desde que nasceu. Mas ganha para isso desde 1998, quando começou a carreira no UOL, onde foi editor de Esporte e trabalhou até 2003. Viveu por mais de 5 anos na Europa - a maior parte do tempo em Madrid, mas também em Londres, Paris e Lisboa. Neste período, estudou, foi correspondente da TV e Rádio Bandeirantes e comentarista do Canal+ espanhol, entre outras publicações europeias. Após a volta para a terrinha natal, foi editor-chefe de mídias digitais e comentarista da ESPN e também editor-chefe da BBC Brasil. Já cobriu cinco Copas do Mundo e, desde 2013, está de volta à primeira das casas.

Sobre o Blog

Este blog fala (muito) de futebol, mas também se aventura em outros esportes e gosta de divagar sobre a vida em nossa e outras sociedades.