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Julio Gomes

'Ronaldinho queria calar bocas e estava engasgado com o Luxemburgo'

Julio Gomes

19/11/2015 12h00

Seis brasileiros entraram em campo como titulares no Santiago Bernabéu naquela noite de sábado, 19 de novembro de 2005, para o superclássico entre Real e Barça. De todos eles, José Edmílson Gomes de Moraes era o mais discreto.

Campeão do mundo com a seleção, é verdade. Mas o jogo tinha outros três astros do penta: Ronaldo, Roberto Carlos e Ronaldinho Gaúcho. Tinha o "futuro melhor do mundo", Robinho. Tinha Deco, o campeão europeu com o Porto e vice com Portugal. Até no banco tinha brasileiro mais "pesado": Vanderlei Luxemburgo. E ainda Júlio Baptista, "la bestia", que espantou a Espanha com um número assombroso de gols pelo Sevilla e foi comprado a peso de ouro pelo Real.

Se hoje faltam brasileiros protagonistas nos grandes jogos europeus, pode-se dizer que este estava longe de ser um problema dez anos atrás.

edmilson_ronaldinho_barcelonaNo duelo entre os consagrados (e envelhecidos) "Galácticos" e um Barça campeão espanhol, mas ainda com muito para provar, Edmílson foi um carregador de piano de luxo. Viu de camarote Ronaldinho Gaúcho destruir o Real Madrid. E a estreia de um jovem promissor, um tal Lionel Messi, em clássicos. O blog conversou com Edmílson sobre aquele 19 de novembro.

 

Julio Gomes – Aquele jogo marcou uma espécie de passagem de bastão, foi quando ficou claro quem era o melhor time da Espanha. Teu time foi também um embrião do Barça que estava por vir?

Edmílson – Foi uma passagem de século. Não se davam conta em Madri que ia surgir uma geração mais forte, um time competitivo. Foi o embrião, fomos campeões da Liga dos Campeões naquele mesmo ano. Boa parte dos jogadores teve sequência com o Guardiola depois. O que o Guardiola implementou depois foi coisa que eu nunca vi e nunca mais a gente vai ver. Uniu qualidade, competência, identidade. O nosso time tinha talento, força, era bem trabalhado, mas não dá para comparar. A grande sacada da virada do clube foi trazer o Ronaldinho em 2003. O Barcelona era um time triste, se tornou um time feliz, com sorriso, jogo bonito. O Barça se tornou vencedor, competitivo. Foi o início de tudo.

JG – Ali no campo foi possível perceber os aplausos ao Ronaldinho depois do 3 a 0, aquele momento singular, histórico?

Edmílson – Para mim, não deu. A gente fica tão concentrado no jogo que acaba não percebendo esse tipo de coisa. Os outros, eu não sei. Mas eu não percebi, estava muito focado. O time do Real Madrid era galáctico, né. Fez uma grande temporada com o Vanderlei (Luxemburgo), mas o Barça estava inspirado. A gente viu depois a repercussão e foi uma sensação excepcional ter aquele reconhecimento, ver a cultura do povo superar a parte política, a rivalidade. E também foi especial por ter sido a primeira vez do Messi jogando um dérbi. Foi um jogo perfeito nosso, podíamos ter feito até mais gols.

JG – Pois é. Messi não era titular do time. De repente começou jogando, foi muito bem, fez a jogada do primeiro gol (de Eto'o)… Como foi essa coisa de ele ter sido titular? Foi uma surpresa só para quem estava de fora?

Edmílson – Acho que o (técnico holandês Frank) Rijkaard planejou bem antes usar o Messi naquele jogo específico. Ele havia jogado pouco na temporada, é como se estivesse sendo guardado para ser a arma secreta. Ninguém conhecia o moleque, era o elemento surpresa, já que Ronaldinho, Deco e Eto'o eram nossos caras decisivos e estariam bem marcados. O (francês Ludovic) Giuly, que era o titular, ficou muito bravo de ficar no banco. A gente não entendeu muito a escalação, mas depois o menino fez uma grande partida. Foi muita personalidade, infernizou o Roberto Carlos. Foi tipo a Copa 2002, quando o Felipão falou que o Kleberson ia ser o destaque da final, porque os alemães estariam preocupados com os Ronaldos e o Rivaldo. Ninguém imaginava que o Messi ia começar jogando, nem no nosso time e menos ainda no Real.

JG – Mas o nome mesmo foi o Ronaldinho…

Edmílson – Foi um dos jogos mais completos que eu vi ele fazer. Acho que estava um pouco engasgado com o Vanderlei com algumas coisas da seleção.

JG – Teve isso, é?

Edmílson – Ah, faz muito tempo, não lembro dos detalhes. Mas acho que teve uma época que o Vanderlei barrou ele. E tinha também a conversa de que o Ronaldo ainda era o melhor jogador brasileiro. O Ronaldinho queria calar a boca de algumas pessoas. Tinha um monte de brasileiros em campo. Mas ele era o brasileiro da época, tanto que foi eleito melhor do mundo. Foi um momento dele, de fincar uma estaca. 'Vou destruir o Vanderlei, vou jogar melhor que o Ronaldo…'. É feeling, vontade de quem quer marcar legado. Os movimentos técnicos que ele faz aquele dia são de jogador que está no pleno auge físico, técnico, emocional, a perfeição de um atleta.

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JG – Ao longo da semana vocês tiveram a indicação que seria o clássico dele? Dava para perceber?

Edmílson – Com certeza. Ele dizia no vestiário 'joga em mim que eu resolvo'. Dava pra sentir. Tinha essa expectativa, sim. O Ronnie estava convicto que ia fazer uma coisa diferente. E fez.

JG – Ronaldinho sempre passou a impressão de ser um cara um pouco alheio a esses momentos, um cara que gosta mesmo é de se divertir em campo. Você acha que naquele momento, após o jogo, ele tinha a noção exata do feito?

Edmílson – A maioria dos atletas, quando está em competição, não tem noção. Ele vai se dar conta do que fez depois que para de jogar. Você está na carreira, viajando, concentrando, jogando e não se dá conta do que está criando como legado. Só hoje me dou conta que fui campeão do mundo. Ele tinha aquele jeito alegre de jogar, natural dele e demonstrava dentro de campo. Estava aproveitando, desfrutando, isso fazia ele se tornar diferente. Depois teve o 6 a 2 (em 2009), mas esse jogo de dez anos atrás ficou marcado pela atitude do torcedor no Bernabéu. Ali foi o respeito ao jogo bonito. Os dois gols que o Ronaldinho faz contra todo um Real Madrid, um clássico… São momentos que ficam marcados.

JG – Você viveu a transformação do clube com a chegada de Ronaldinho e ainda pegou o surgimento de Messi. O Neymar já está na história do Barcelona, é campeão europeu. Mas acha que ele conseguirá ter um peso parecido com o que tiveram esses outros dois?

Edmílson – Se ele seguir nessa evolução, certeza que vai marcar história no Barcelona, sim. É um cara que quer jogar sempre, tem muita força de vontade. Depende 100% dele, do que ele quer para a vida dele. Se ele quer ser melhor do mundo ou se quer ganhar três, quatro Champions e então ser eleito melhor do mundo, como fez o Messi. Tem que renunciar a algumas coisas da vida para chegar assim longe. Pode ter sido um pouco o erro do Ronaldinho. Depois de dois ou três anos fantásticos, ele optou por outras coisas e o jogo caiu.

JG – Você acabou saindo junto com ele, em 2008, logo quando o Guardiola ia assumir…

Edmílson – É, eu peguei o Guardiola no Barça B. Fiquei muito tempo machucado naquela última temporada e treinei algumas vezes com ele no time de baixo.

JG – Olhando para trás, naquela época. Você imaginava que Messi e Guardiola iriam virar o que viraram?

Edmílson – Não. O Messi, na dimensão que ele atingiu, não imaginava. Para mim, é o melhor jogador da história. Não vi Pelé nem Maradona… mas o que o Messi faz, permanecer desse jeito, nesse nível, por oito anos seguidos. É inacreditável. A gente via nos treinos, sabia que era diferenciado, mas um monte de moleque passa, parece diferenciado, joga um ano bem e some. A evolução dele foi espetacular. O Guardiola também foi uma surpresa. A gente sabia que tinha um contexto de organizador, mas o que ele implementou foi surpreendente. Todas as categorias jogavam do jeito que ele queria, vistoriava tudo. Tem que dar crédito ao clube, que apostou. Se não tiver aposta, nunca aparece a nova geração.

***

Ficha do clássico de 19/11/2005:

REAL MADRID: Iker Casillas; Míchel Salgado, Sergio Ramos, Helguera e Roberto Carlos; Beckham, Pablo García (Júlio Baptista),  Zidane e Raúl (Guti); Robinho e Ronaldo. Técnico: Vanderlei Luxemburgo.

BARCELONA: Víctor Valdés; Oleguer, Rafa Márquez, Puyol e Gio van Bronckhorst; Xavi, Edmílson e Deco; Ronaldinho, Messi (Iniesta) e Eto'o. Técnico: Frank Rijkaard.

GOLS: Eto'o, aos 15min do primeiro tempo;  Ronaldinho, aos 14min e aos 32min do segundo tempo.
ÁRBITRO: Iturralde González. Mostrou amarelos a Deco, Ronaldinho, Salgado, Robinho e Pablo García.
PÚBLICO: 78.000 espectadores no estádio Santiago Bernabéu, em Madri.

Melhores momentos: Clique aqui e relembre.

Sobre o Autor

Julio Gomes é jornalista esportivo desde que nasceu. Mas ganha para isso desde 1998, quando começou a carreira no UOL, onde foi editor de Esporte e trabalhou até 2003. Viveu por mais de 5 anos na Europa - a maior parte do tempo em Madrid, mas também em Londres, Paris e Lisboa. Neste período, estudou, foi correspondente da TV e Rádio Bandeirantes e comentarista do Canal+ espanhol, entre outras publicações europeias. Após a volta para a terrinha natal, foi editor-chefe de mídias digitais e comentarista da ESPN e também editor-chefe da BBC Brasil. Já cobriu cinco Copas do Mundo e, desde 2013, está de volta à primeira das casas.

Sobre o Blog

Este blog fala (muito) de futebol, mas também se aventura em outros esportes e gosta de divagar sobre a vida em nossa e outras sociedades.