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Julio Gomes

Seleção ganha em campo, mas leva o maior dos tapas na cara fora dele

Julio Gomes

11/10/2014 19h46

Era um verão de 2007. Eu estava de férias, dando uma volta de carro pela Turquia antes de cobrir o GP de F-1 local para a Rádio Bandeirantes. Andava atrasado e com pressa, como sempre, de uma cidade para outra. Já tinha dirigido uns 1000 quilômetros naqueles dias e não via a hora de chegar logo a Istambul. Passando por uma cidade chamada Bursa… sirene. Encosta. Polícia. Putz.

Eles não falavam inglês. Eu não falo turco. Era nada com nada. Sem chance de diálogo. Eles pediam muito dinheiro, eu nem tinha aquilo tudo comigo. E, claro, sabia que não devia ser o valor de uma multa simples de velocidade. Mas eu tinha uma câmera no porta-malas do carro. E tinha uma entrevista gravada nela. Não lembro agora se era do Alex ou do Roberto Carlos. Acho que era do Alex. E tinha uma camisa do Brasil também, que eu sempre levava comigo. A 10 de Ronaldinho. 

Em 10 segundos, estava resolvido. Abraço pra lá, abraço pra cá. Acho que eu recitei todos os nomes de jogadores brasileiros que jogavam na Turquia naquela época. Até do Marco Aurélio, que tinha virado ou iria virar Mehmet Aurélio. Os caras adoraram. E eu segui caminho.

Quem é jornalista e já viajou bastante sempre terá histórias parecidas para contar. Ser brasileiro já me tirou de cada enrascada!

Não são as novelas. Nem os políticos. Não foi o tricampeonato do mundo. Nem as vitórias dos times brasileiros no Japão. Sempre foram, na minha razão, dois fatores. O primeiro, que talvez poucos notem, o fato de o Brasil não ter se metido em guerras e ter recebido tantas ondas de imigrantes. Não temos inimigos. O segundo, o que todos vemos a olho nu, é a paixão pela magia do nosso futebol.

O amor pelo Brasil não vem de nossos títulos. Tantas Copas Américas, tantas Copa das Confederações, tantos isso, tantos aquilo. O amor é pelo jeito de jogar. A tal "ginga". O modo simpático, alegre, leve de atuar dentro de campo. O sorriso no rosto. Nós sempre fomos o futebol. Não só jogamos. Somos a essência do esporte.

Eu já cobri jogo da seleção brasileira na China. A primeira vez, faz 11 anos e alguns meses. Era a estreia de Carlos Alberto Parreira, logo após o penta de Felipão. A seleção era uma febre. A segunda, em 2008. Era a semifinal olímpica, e o estádio inteiro torcia pelo Brasil de Ronaldinho (e Dunga). 

Neste sábado, a TV chinesa mostrou grupos e mais grupos de pessoas com a camisa da Argentina nas arquibancadas do Ninho de Pássaro. Amigos me contam que a coisa estava dividida por lá. Torcida dividida em jogo da seleção em país neutro. Asiático, ainda por cima. Não, não é normal.

Alguns podem dizer que a culpa é de Messi. Chineses vestiam a camisa da Argentina por causa de Messi. Tem sentido. Mas é bom lembrar que outros jogadores argentinos são protagonistas nas grandes ligas europeias. Di María, Aguero, Zabaleta, Rojo, Mascherano, estão nos times que têm todos os seus jogos transmitidos para a Ásia. E são importantes neles, não apenas coadjuvantes.

O fato é que, na era do futebol global, o Brasil perdeu protagonismo. E o futebol que a seleção brasileira pratica já não tem magia há anos. Décadas.

Vocês acham que algum gringo se apaixonou pelo Brasil assistindo às Copas de 2006, 2010 ou 2014? Saiu para comprar camisa? Ou vendo o São Paulo contra o Liverpool. Ou o Corinthians contra o Chelsea. Acha mesmo?

Dois casos recentes que aconteceram comigo me fizeram abrir os olhos.

Em maio, em Londres, onde estive a trabalho, passei todo um trajeto batendo papo sobre futebol com um taxista. O cara era um apaixonado pelo futebol brasileiro. Amava Sócrates, Tostão, Rivellino. E, em determinado momento, me disse. "O Chelsea (time dele) tem um jogador aqui que é muito bom. Mas que não tem nada, nada, nada de brasileiro. O nome dele é Ramires. Corre, corre, corre. Mas tenho certeza que ele não nasceu no Brasil!". 

(Em tempo, eu gosto do futebol de Ramires. Não vejo brilho, mas gosto.)

O outro caso aconteceu na Copa, participando de transmissões da rádio BBC 5 Live. E os colegas comentaristas estavam assustadíssimos com o futebol muitas vezes violento apresentado pelo Brasil. Especialmente naquele nefasto jogo contra a Colômbia, em Fortaleza. "Julio, o que aconteceu com nosso Brasil?", perguntavam. Era como um divórcio. Eles estavam acordando do sonho que viveram por décadas.

Porque vamos lá, né. Vamos combinar. Na Europa, a não ser meia dúzia de fanáticos ou ultraprofissionais, ninguém vê futebol brasileiro e nem jogos da seleção brasileira. A canarinha só é apreciada nas Copas. É por isso, desconfio, que eles demoraram tanto para cair na real. E os 7 a 1 foram aquela coisa. Acordaram do sonho caindo da cama. Foi meio bruto.

O jogo contra a Argentina, por ser em um sábado "vazio" e sem concorrência, por ser um clássico, por ser em bom horário, até que teve um bom número de "gringos" comentando na minha timeline do Twitter. E vocês acham que a vitória e os gols de Tardelli foram suficientes? Claro que não. E nem poderiam.

Foi um Brasil consciente de sua limitação, o que é mérito de Dunga. Sabe que é inferior, se defende com louvor e tenta achar oportunidades nos contra ataques, com jogadores bons e velozes. Podia ter perdido da Argentina, pelo que foram os 30 primeiros minutos. Mas ganhou. Mereceu ganhar o jogo. Porque fez seu plano de jogo se impor. Mas fantasia? Magia? Sorriso no rosto? 

haha

É um Brasil de contra ataques. Como foi o anterior de Dunga. Comprometido, atualizado, aproveitando-se da evolução tática e técnica dos seus nas ligas europeias. Os times de Mourinho também são assim. É um Brasil que pode ganhar de qualquer um. E que pode perder de qualquer um. Que vai jogar em função do adversário, não fazer o adversário jogar em função dele. Que não vai ser lembrado nem admirado.

O Brasil pode até ganhar a próxima Copa. Mas ele já se divorciou de si mesmo há muito tempo, muito antes do divórcio internacional que estamos vendo agora. Aquelas camisas da Argentina em Pequim não são coincidência. São um tapa na cara. E merecido, por tudo o que foi feito com o futebol brasileiro ao longo dos últimos 30 anos.

Aqui, aprendemos que o que importa é ganhar. Seja no futebol, seja nas eleições, seja na reunião de condomínio. Legado? Isso não faz parte da nossa sociedade. É o aqui, agora. O que me satisfaz. E pronto.

Você acha mais importante ganhar da Argentina de 2 a 0, seja como for, do que perder de outra maneira? Você acha que a Supercopa das Américas é mais importante do que ter meia dúzia de chineses com a camisa do Brasil na arquibancada?

OK, eu respeito. Vocês são maioria.

Eu apenas lamento. Ganhar e perder, todos ganham e perdem. Tocar lá no fundo é para poucos.

Ainda dá tempo de mudar tudo isso, mas creio que na estrada turca, daqui a alguns anos, não restará outro idioma que não o do dinheiro para conversar com aqueles guardas. A camisa brasileira já não deverá estar valendo para muita coisa, não. Não irá tocar corações e nem arrancar sorrisos. Será apenas um pano amarelo.

Sobre o Autor

Julio Gomes é jornalista esportivo desde que nasceu. Mas ganha para isso desde 1998, quando começou a carreira no UOL, onde foi editor de Esporte e trabalhou até 2003. Viveu por mais de 5 anos na Europa - a maior parte do tempo em Madrid, mas também em Londres, Paris e Lisboa. Neste período, estudou, foi correspondente da TV e Rádio Bandeirantes e comentarista do Canal+ espanhol, entre outras publicações europeias. Após a volta para a terrinha natal, foi editor-chefe de mídias digitais e comentarista da ESPN e também editor-chefe da BBC Brasil. Já cobriu cinco Copas do Mundo e, desde 2013, está de volta à primeira das casas.

Sobre o Blog

Este blog fala (muito) de futebol, mas também se aventura em outros esportes e gosta de divagar sobre a vida em nossa e outras sociedades.