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Julio Gomes

A humilhação necessária para o Brasil repensar todo seu futebol

Julio Gomes

09/07/2014 12h48

Ninguém gosta de ver os conterrâneos humilhados. Pessoas tristes, chorando, cabisbaixas. O que aconteceu no Mineirão nesta terça-feira toca fundo o coração de quem tem sentimentos. Quando o brasileiro enxugar a lágrima, no entanto, lavar o rosto e sacudir a poeira, talvez ele perceba que o que aconteceu era previsível. Mais do que previsível, era até óbvio. E necessário. As vitórias escondem problemas, as derrotas jogam luz sobre eles.

O futebol brasileiro está parado no tempo. Os poucos que estão há bastante tempo colocando o dedo na ferida são massacrados por parcela da opinião pública e a enorme parte dos torcedores. As acusações são super profundas: "antipatriotas", "torcem contra", "vira-latas" e por aí vai.

Quando saiu a tabela da Copa do Mundo, muitos levantamos a bola para a possibilidade de o Brasil simplesmente não jogar uma partida sequer em seu estádio mais importante, o Maracanã. A seleção só jogaria no maior templo do futebol mundial se fosse à final. Como os dirigentes do futebol brasileiro, que são os que determinaram isso, poderiam ter sido tão arrogantes?

Como ainda pensar, em pleno ano 2014, que não haveria a possibilidade de o Brasil ficar fora da final da Copa? Talvez a explicação esteja no fato de muitos ainda acharem que, pelas cinco estrelas no peito, só por aqui se sabe jogar bola. O resto é tudo "pereba" que às vezes dá a sorte de ganhar da gente.

Talvez seja emblemática a frase de Carlos Alberto Parreira no ano passado, ao final da Copa das Confederações. "Existe uma hierarquia no futebol", bradou Parreira. A Espanha, campeã do mundo e bi europeia, não havia ainda enfrentado o verdadeiro dono do futebol mundial, era o que ele queria dizer. Claro, mais fácil tripudiar por um jogo do que entender tudo o que havia sido construído pelo rival ao longo de anos. Entender, assimilar, aplicar.

O futebol do Brasil está não um, mas vários degraus abaixo dos principais países da Europa. Precisa mudar tudo. Absolutamente tudo. Também porque, como vimos, começa a respingar na seleção brasileira. Ainda que a seleção e o futebol brasileiro sejam coisas distintas, eles são comandados pela mesma entidade, a CBF. E um poderia/deveria se beneficiar do outro. Não é o que acontece na prática.

No ano 2000, a Alemanha fez uma Eurocopa lamentável. Saiu humilhada na primeira fase, um gol marcado. Os dirigentes do futebol alemão, federação e clubes, se reuniram para revolucionar o futebol. Duas ações básicas: organizar a liga doméstica e mudar tudo na base. A ideia era ter mais jogadores locais nos principais times, melhorar a qualidade do jogo e, consequentemente, os resultados da seleção.

A geração alemã que está na final da Copa é basicamente a primeira fornada de algo planejado. Não tem "geração alemã", não tem "sorte". Tem trabalho. Os jovens alemães são desde muito cedo ensinados a se comportar de forma coletiva, como a própria sociedade alemã exige. Nunca, porém, a criatividade e a capacidade de raciocínio e desenvolvimento são deixados de lado. Quem não vira jogador de futebol tem estudos e pode seguir na carreira esportiva, por exemplo, como treinador, preparador físico, etc. Eles não são preparados apenas para jogar. São preparados para a vida em sociedade. É o futebol como inclusão e ferramenta de tolerância em um país com tantas etnias.

A Bundesliga é hoje a segunda liga de futebol do mundo, deixou a espanhola para trás e se aproxima rapidamente da Premier League inglesa. Os clubes não podem ser vendidos para magnatas russos, árabes ou de onde for. Precisam mostrar solvência financeira para poderem disputar o campeonato. Um campeonato, aliás, com divisão de receitas em função de resultados dos anos anteriores, e não de acordo com o que quer a televisão ou da popularidade. Os clubes são obrigados a seguir estritos padrões de qualidade em suas academias de futebol.

Exemplos práticos: o sub-15 de um time qualquer precisa treinar em campos com dimensões X, ter à disposição vestiários com dimensões Y e precisam ter Z profissionais da área técnica, todos devidamente formados e credenciados pelos cursos da Federação Alemã. Cada clube também é obrigado a definir uma filosofia de jogo, que precisa ser aplicada em todos os níveis, do mirim ao profissional. Não pode o técnico sub-17 do Wolfsburg gostar de centroavante alto e brigador e o técnico sub-15 achar que só baixinhos podem jogar no ataque. Existe coerência entre as faixas etárias em função de como o departamento técnico do clube enxerga o futebol, e tudo isso é monitorado por uma empresa de auditoria belga.

A Federação Alemã é tudo o que a CBF não é, mas deveria ser. É a responsável por fomentar o esporte em todos os níveis, exceto primeira e segunda divisões (que são a Bundesliga, geridas pelos próprios clubes). Em todos os níveis, são aplicados padrões de qualidade idênticos aos exigidos pelos clubes de elite para os clubes de elite. São centros de formação, centenas deles, espalhados pelo país e sem necessariamente vínculos com clubes. Sempre, e este é um pré-requisito, com o trabalho de profissionais credenciados, treinados e diplomados pela Federação.

"A CBF é um exemplo para o Brasil. É o Brasil que deu certo, que dá certo", falou o mesmo Carlos Alberto Parreira, antes do Mundial.

A CBF administra uma seleção de um país que, hoje, tem história e matéria prima. Um país em que há monocultura esportiva e jovens de classes menos abastadas veem no futebol a chance de prover para suas famílias algo que nunca conseguiriam por outros meios. Quando se mudam para a Europa, ainda adolescentes na maioria dos casos, passam a ter contato com outras facetas do jogo e viram profissionais mais completos. São estes os que formam a seleção. Ou seja, a CBF tem uma seleção forte basicamente porque os jogadores se beneficiam do que aprendem no futebol de alto nível.

De resto, a CBF não faz nada pelo futebol brasileiro. Alimenta uma triste relação de poder com as federações estaduais, que se aproveitam da incompetência e má administração dos clubes. Uma emissora de TV é voz ativa e fundamental na determinação de algo tão básico como o calendário. Temos uma liga fraca, futebol de base comandando por empresários e público pequeno nos estádios – aliás, estava esquecendo que a Bundesliga, com preços baixos, tem a maior média de público do futebol mundial, com 40 mil pessoas por jogo.

Uma derrota como a do Mineirão deveria fazer o futebol brasileiro olhar para a Alemanha e copiar tudo. Sem dó. Tudo.

Mas, conversando com os jogadores após a derrota, só fiz me decepcionar. Daniel Alves, talvez com cabeça mais fria por não ter jogado, foi o único que admitiu que temos muito o que fazer.

"Somos o país do futebol, mas não somos donos. Venho falando isso faz muito tempo. O futebol está evoluindo em todas as partes do mundo e temos que evoluir junto. A seleção brasileira não tem muito a ver com o futebol brasileiro. Hoje, todas as seleções competem. Independente de hoje (os 7 a 1), a gente tem que procurar evoluir, melhorar, na questão do futebol e no pessoal também", disse Daniel.

"Quando perde, tem que olhar, né. Quando ganha, passam algumas coisas despercebidas. Tem que aprender sempre, com vitória e com derrota", falou Fred. "Nesse momento, cada um tira frutos de alguma coisa. Tem que refletir, as coisas não podem ser desse jeito. A gente espera que mude para melhor", disse Maicon.

Dante, que atua no futebol alemão há anos, que vê de perto tudo o que é feito lá, disse o seguinte: "Não tem que repensar em nada. Acha que se ganhássemos hoje os alemães iam repensar no método deles de trabalhar?". Ainda tentei argumentar, foi justamente o que os alemães fizeram após a Eurocopa-2000. Mas talvez ele estivesse baqueado demais para ouvir, é necessário dar um desconto para um rapaz que claramente ainda não tinha entendido o tamanho da derrota.

"O futebol alemão é muito organizado, eles têm um trabalho desde categorias de base até as principais muito bom. Na seleção, jogam há seis, sete anos juntos e muitos no mesmo clube. De tudo, temos que tirar aprendizado. Quando se perde da forma que perdemos hoje, tem que tentar procurar as coisas boas para levar para frente", comentou Luiz Gustavo, que foi do Bayern de Munique e hoje está no Wolfsburg.

Da seleção brasileira que entrou em campo contra a Alemanha, mais da metade nem atuou no Brasil ou jogou por pouquíssimo tempo aqui. Será que isso é normal?

Ultimamente, alguns técnicos brasileiros, que não conseguem triunfar em lugar algum do mundo no esporte de alto nível, andaram ridicularizando os "acadêmicos do futebol". Talvez seria legal eles lerem esta reportagem sobre como a pesquisa acadêmica foi usada pelos alemães antes do jogo com o Brasil.

O futebol no Brasil é empírico, artesanal e vive sentado na petulância e na história. Paramos no tempo. Não formamos jogadores, não formamos técnicos, não influenciamos há décadas o futebol mundial. A única coisa que fazemos é exportar matéria prima, diamantes brutos. Agora, além de tudo, estamos perdendo a aura e os fãs conquistados mundo afora pelas gerações de 70 e 82. Quem vai se apaixonar pela seleção brasileira? Qual a escola brasileira dos últimos 30 anos?

Não acho que o futebol do nosso país passará por uma revolução de um dia para o outro. Infelizmente, não é o que parece, principalmente quando vemos emergir o discurso do "foi uma goleada casual". As mudanças estão ocorrendo aqui e ali, de maneira lenta, mas tudo precisa começar por uma mentalidade diferente. Precisamos descer do salto, sermos menos arrogantes e petulantes, entender que o futebol hoje é global, jogado no mundo todo. Que é estudado, analisado. Gente como os jogadores do movimento Bom Senso, que andaram sendo ridicularizados, talvez ganhe mais atenção. Talvez, apenas talvez, a humilhação do Mineirão seja um catalizador, as coisas aconteçam um pouco mais rapidamente.

Dos 7 a 1, pode ficar só a dor. Ou pode ficar a esperança da revolução que o futebol brasileiro precisa.

A Alemanha está aí. É só copiar.

Sobre o Autor

Julio Gomes é jornalista esportivo desde que nasceu. Mas ganha para isso desde 1998, quando começou a carreira no UOL, onde foi editor de Esporte e trabalhou até 2003. Viveu por mais de 5 anos na Europa - a maior parte do tempo em Madrid, mas também em Londres, Paris e Lisboa. Neste período, estudou, foi correspondente da TV e Rádio Bandeirantes e comentarista do Canal+ espanhol, entre outras publicações europeias. Após a volta para a terrinha natal, foi editor-chefe de mídias digitais e comentarista da ESPN e também editor-chefe da BBC Brasil. Já cobriu cinco Copas do Mundo e, desde 2013, está de volta à primeira das casas.

Sobre o Blog

Este blog fala (muito) de futebol, mas também se aventura em outros esportes e gosta de divagar sobre a vida em nossa e outras sociedades.