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Julio Gomes

Caso Sidão: zoeira saudável ou bullying insuportável?

Julio Gomes

13/05/2019 21h40

Existe algo com pouca margem para debate: a Globo errou no caso Sidão.

Não errou no regulamento da votação, isso aí é engenharia de obra pronta. É lógico que uma votação para melhor em campo tem que conter todos os jogadores, não é o regulamento (que foi, de fato, modificado) o culpado. Errou pela falta de sensibilidade. Aconteceu a zoeira, adapte-se a ela.

Luis Roberto, que é ótimo narrador, um dos melhores, não percebeu que nem sempre é possível apaziguar e contemporizar, que é uma marca das transmissões e mesmo da programação jornalística globais (não tocar o dedo nas feridas). Ali não tinha essa de "prêmio de solidariedade". Ali, tinha uma zoeira, uma avacalhação, uma esculhambação, um esculacho. Faltou uma cabeça para determinar que o prêmio não deveria ser entregue.

Eu trabalho na área e trabalho também, como empresário, em situações de decisões rápidas. Não é fácil. Muitas vezes a velocidade te supera, cinco minutos de dúvida, uma indecisão, uma aprovação que falta e… já era.

A Globo tanto errou que se desculpou, mudou o regulamento, etc. Então essa crítica já foi feita até internamente e exposta publicamente. Foi a entrega do troféu a Sidão que gerou constrangimento e pena.

Mas e se o Sidão fosse um cuzão, com o perdão da palavra? E se o Sidão fosse um desses caras mais polêmicos, que geram amor e ódio? Um Neymar, talvez. E aí, tanta gente teria ficado com dó? Ou teria considerado merecido? Aí que está, um dos pepinos da situação. O que é certo ou errado é certo ou errado em função da ética de cada um e do histórico dos envolvidos.

Olhem como a coisa se complica. Mas OK, nesse caso estamos todos de acordo que a entrega do "prêmio" não deveria ter ocorrido, ainda que não fossem públicos e notórios os problemas de depressão de Sidão, etc, etc, etc.

Quero discutir um passo anterior, a votação em si.

Eu falei no Twitter, e isso gerou muita polêmica, que considerava aquela uma zoeira "do bem". Fui bem claro ao citar a votação em si, não a entrega do prêmio, mas vale reforçar, porque interpretação de texto não é o forte do brasileiro.

Eu detesto muitas coisas na sociedade brasileira, me sinto deslocado em vários momentos, mudei muito meu jeito de ver as coisas depois de morar cinco anos fora do país e hoje há coisas que simplesmente não consigo engolir. Mas a capacidade de zoação do brasileiro não é uma delas.

Raras são as sociedades que conseguem se mobilizar para mandar um recado de sarcasmo, de ironia fina. Bem, depois fui ver que uma conta X aí de redes sociais foi quem gerou essa mobilização, e o mesmo já aconteceu em movimentos de protestos políticos, até de eleições. Há sempre uma cabeça por trás da manada.

Mas mesmo o movimento de manada precisa de uma concordância. Ou seja, as pessoas precisam querer fazer aquilo para serem, de fato, organizadas naquela direção.

E o brasileiro gosta mesmo é de zoar, é do deboche. Rir das mais variadas situações.

Isso é um problema? A meu ver, não. O mundo e a vida já são feitos de coisas sérias demais, o tempo todo. Não estou aqui adotando o infame discurso do "o mundo está chato, não se pode nem mais fazer piadinha, para o inferno com o politicamente correto". Não confundam, não é isso.

Estou falando de nossa capacidade de fazer brincadeiras, piadas, de debochar e de rir. Poucos povos têm isso. Não é isso que faz, da brasileira, uma sociedade falida. Isso é das poucas coisas boas que temos.

Agora, há uma linha bem fina entre a brincadeira e a humilhação, o bullying.

Quem não sofreu bullying na infância/adolescência ou mesmo na vida adulta? Possivelmente, todos nós. Alguns mais, alguns menos. Alguns ficaram marcados, outros não, outros tantos ficaram, mas nem sabem disso. O bullying nunca é algo para ser louvado ou relativizado, o bullying é gravíssimo, é uma doença social – e não é exclusividade nossa, acontece no primeiro mundo. De monte.

Há várias características ruins típicas do terceiro-mundismo, já extintas em outras sociedades. O bullying não, é problema mundial.

Como pai de três, observo muito minhas filhas e o comportamento delas em várias situações, gosto de olhar para crianças, porque não houve tempo ainda para "ensiná-las" muita coisa. Gosto de observar os instintos naturais. É nítido como o ser humano faz maldades em grupo que não faria individualmente.

Agora, a votação de Sidão como melhor em campo é uma simples zoeira ou bullying?

É algo inofensivo ou algo absolutamente condenável e que não pode se repetir?

Será que todos os que votaram em Sidão tinham essa maldade toda no coração?

Ser jogador de futebol é uma dessas profissões públicas, em que todos os movimentos são avaliados, elogiados, criticados. Nem todas as profissões são assim, sujeitas ao que diz o público. Aliás, poucas são (e a minha é uma delas). Quem joga futebol sabe que o julgamento popular é parte da coisa, são ossos do ofício. Às vezes, são levados ao céu, às vezes vão parar no inferno.

Acho que a brincadeira passa a ser bullying quando o profissional é "impedido" de trabalhar, é perseguido seguidamente, a vida se torna insuportável. É o caso com Sidão?

A zoeira, a meu ver, foi pontual, não foi a primeira vez, é bastante comum no mundo do futebol e profissionais estão acostumados. A zoeira virou humilhação exclusivamente devido ao troféu dado no campo, e aí volto ao início do texto: um erro grave.

Chamar um jogador de macaco não é zoeira, é crime (ainda que o presidente da República, branco e privilegiado, tenha a cara dura de dizer que "esse negócio de racismo já deu"). O nefasto grito de "bicha" no tiro de meta não é zoeira, é uma ofensa coletiva a uma orientação sexual, há pessoas que sofrem e sofreram muito na vida por isso. Ameaçar árbitros, jornalistas ou outros profissionais nas redes não é zoeira, é, também, crime.

Muita gente hipócrita está destilando ódio nas redes após anos de xingamento e falta de respeito assistindo a jogos de futebol. Eu acho melhor votar em alguém de forma irônica do que chamá-lo de filho da p…

Votar ironicamente em um goleiro como craque do jogo, uma sutileza para chamá-lo de frangueiro, é tão grave assim?

Sei lá, posso estar errado, mas acho que não.

Sinto muito por Sidão, pela situação em que ele e a repórter Júlia Guimarães foram colocados. Mas a culpa não é da zoeira, é apenas de quem não soube interpretá-la como tal.

 

Sobre o Autor

Julio Gomes é jornalista esportivo desde que nasceu. Mas ganha para isso desde 1998, quando começou a carreira no UOL, onde foi editor de Esporte e trabalhou até 2003. Viveu por mais de 5 anos na Europa - a maior parte do tempo em Madrid, mas também em Londres, Paris e Lisboa. Neste período, estudou, foi correspondente da TV e Rádio Bandeirantes e comentarista do Canal+ espanhol, entre outras publicações europeias. Após a volta para a terrinha natal, foi editor-chefe de mídias digitais e comentarista da ESPN e também editor-chefe da BBC Brasil. Já cobriu cinco Copas do Mundo e, desde 2013, está de volta à primeira das casas.

Sobre o Blog

Este blog fala (muito) de futebol, mas também se aventura em outros esportes e gosta de divagar sobre a vida em nossa e outras sociedades.