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Julio Gomes

Uma tarde de futebol (e algo mais) no Uruguai

Julio Gomes

28/10/2016 17h58

Este blog fala majoritariamente de futebol, todos vocês, leitoras e leitores, sabem disso. Mas abro aqui uma pequena exceção para falar de uma viagem de 10 dias que acabo de fazer com a família – por isso, o blog quase não falou de Champions, STJD, seleção, Arena Corinthians, a triste morte do Capita Carlos Alberto, o piti ridículo de Mourinho com Conte, enfim, os assuntos que andaram pipocando nos últimos dias.

O Uruguai.

Aqui do lado, aqui pertinho. Para quem mora em São Paulo, por exemplo, é mais barato e rápido ir ao Uruguai do que ao Nordeste. Às vezes ignoramos coisas que estão na nossa frente.

O Uruguai é um país de 3 milhões e pouco de pessoas, metade delas moram em Montevidéu. E a capital se espalha pela costa do Rio La Plata. Parece mar, mas não é. É rio. É incrível. No último dia de viagem, peguei frio e chuva, uma virada de tempo daquelas. Ondas, isso mesmo, ondas, chegavam às "praias" de Montevidéu.

Havia gente surfando (claro que não era um Havaí). E havia muita gente praticando kite surf. A imagem final que eu levo da capital uruguaia apenas me fez confirmar uma impressão que foi aumentando ao longo da viagem: como o esporte está presente no cotidiano uruguaio.

É claro que o futebol é o carro chefe. O futebol está por todas as partes. Só não vi gente jogando bola na praia em Punta del Este, mas aquela é uma estância de verão e nos dias em que lá estive nem fim de semana era. O balneário estava vazio.

Em Montevidéu, vi gente jogando bola nos parques, como em outros países que tanto amam o esporte rei. Mas o que achei interessante foi a quantidade de estádios. Dos 16 clubes da primeira divisão uruguaia, 12 (!!!) jogam em Montevidéu. Em 12 estádios diferentes (!!!). E nenhum deles é o famoso Centenário (!!!).

O velho e bom Centenário, em Montevidéu

O velho e bom Centenário, em Montevidéu

Incrível, não? No Parque do Prado, onde levei minha filha mais velha para saltar no pula-pula e balançar por horas, havia três estádios. No Parque Rodó, já bem perto do centro da cidade, tem o Estádio Luis Franzini, onde joga o Defensor Sporting – aliás, a sede do clube estava lotada naquele fim de tarde, com quadras de tênis ocupadas. No Parque Batlle, também perto do centro, fica o Centenário. Imaginem se a polícia uruguaia resolvesse que jogos não aconteceriam ao mesmo tempo na mesma cidade, como fazem aqui no Brasil? Não haveria campeonato.

Ao longo de uma tarde de domingo, vários jogos pipocam em Montevidéu e se enganam os que pensam que somente Peñarol e Nacional, os dois gigantes do país, enchem suas canchas.

Acabei indo com mulher e filhas (de 3 anos e de 5 meses) ao jogo entre Nacional e Sudamérica. O estádio do Nacional é o Parque Central, pertinho do Centenário, com capacidade para 26 mil pessoas. Me lembrou o Canindé ou o velho Palestra Itália, o tamanho é parecido.

Paramos o carro bem perto do campo, pagamos o flanelinha (não teve como fugir) e nos deparamos com um pequeno problema. Não havia ingressos. Assim como ingressos, não havia a menor tensão no ar. Mesmo passando ao lado da entrada dos "barras", os organizados, os mais supostamente perigosos. Ambiente familiar.

Faltava uma hora e 15 para o início da peleja e foi decepcionante imaginar que não entraríamos. O garçom do café onde havíamos feito o desjejum pela manhã, torcedor fanático do Nacional, havia me garantido que isso não aconteceria! Foi um policial que deu a dica, ao notar meu sotaque e talvez com piedade por me ver com a pequena de 5 meses no meu colo. "Por que vocês não tentam ali nos visitantes?"

Boa ideia. Fomos até a barreira policial, não havia ninguém passando por ela. O guarda me perguntou: "Vocês são do Sudamérica?" (eu não sabia nem quais eram as cores do Sudamérica). E eu respondi, rindo. "Somos de Sudamérica… de Brasil". Ele sorriu e nos deixou passar.

Pagamos 200 pesos pelo ingresso (25 reais). Pelo que eu havia visto no jornal, o mais caro custava 500 pesos (60 reais). E, claro, ficamos no meio de uns 40 ou 50 torcedores visitantes.

Os barras do Nacional não param de cantar

Pequena torcida do Sudamérica no Parque Central

Como torcedor da Lusa que já foi a muito estádio, inclusive fora de São Paulo, me senti, digamos, "em casa". O mesmo moço lá do café havia me dito, rindo alto, que era "um jogo tranquilo para ir. Não haverá torcida rival, só famílias dos jogadores".

Logo que entramos minha filha mais velha fez amizade com outra menininha da mesma idade. Corriam para lá e para cá ao pé da arquibancada, alheias ao jogo. Perguntei para a mãe de onde era o Sudamérica. E ela me respondeu, meio envergonhada. "Não sei… na verdade só estou aqui porque meu marido está jogando, é aquele lá, o número 5".

Fiz apenas cara de espanto, e ela continuou. "Sabe, eles não recebem salários há quatro meses. O técnico já disse que esse é o último jogo dele".

Uma semana depois do jogo, enquanto escrevia este post, fui dar uma pesquisada. O técnico Julio Fuentes, de fato, saiu após o jogo. E foi acertado um convênio em que o Sudamérica passa a ser gerido por um grupo espanhol. Uma comissão técnica espanhola assumiu o clube. Tomara que paguem os salários para o pai da simpática Inés, que pulou e correu por hora e meia com minha pequena. Incrível como brincar é um verdadeiro idioma universal.

O ambiente do estádio era fantástico. Os barras, que estavam atrás do gol oposto ao meu, não param de cantar por um segundo sequer. O resto do estádio acompanha às vezes (não o tempo todo, como muitos imaginam). Na verdade, me pareceu um transporte no tempo, para os anos 80. Bandeiras, papel picado, faixas, bandinha. Um estádio muito mais colorido, muito mais animado. Eu vi muitos, muitos jogos assim no Canindé quando era pequeno. É fato: aqui no Brasil e na Europa, os estádios perderam muito da essência de antigamente. No Uruguai, ela está mantida.

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Os barras subiam o tom justamente quando o Nacional pior se encontrava no jogo. É o que devem fazer torcidas, no fim das contas. Apoiar quando precisam. O pequeno Sudamérica teve duas chances de ouro no primeiro tempo, dois gols feitos. A torcida ao meu redor não parecia se importar tanto. Menos um rapaz, de camisa laranja (o Sudamérica é laranja e preto), que gritava loucamente. Chamava todos os jogadores pelo nome. Pelo primeiro nome. Ou pelo apelido lá do bairro, sei lá.

No intervalo, minha filha precisou fazer o número um e o número dois, se é que vocês me entendem. Vi o banheiro, daqueles químicos, e pensei "xiiii". Pois nunca vi um tão limpo. Uma funcionária do estádio me indicou, minha filha fez o que precisava e, assim que saímos, ela já higienizou o local. Foi um alívio e uma surpresa positiva para mim.

No fim das contas, resolvi ir embora aos 25 minutos do segundo tempo para evitar a confusão. Aos 33, saiu o gol da vitória do Nacional. Já estávamos na rua indo até o carro. Apenas ri. A lei de Murphy não falha.

Quando viajamos, às vezes nos prendemos tanto às listas básicas do "que fazer", aquelas listas dos guias e cadernos de turismo dos jornais, que acabamos passando reto por coisas que as pessoas locais realmente fazem. Os uruguaios não lotam museus todos os fins de semana. Eles lotam canchas.

Quem for ao Uruguai, à Argentina, à Europa… pense nisso. Ir a um jogo de futebol, por mais que possa ser um perrengue dependendo do contexto, é uma experiência verdadeiramente local. Tanto ou mais que um restaurante ou um monumento. Futebol é cultura, é o cotidiano, é o que gente normal faz.

Infelizmente, cheguei ao Uruguai poucos dias depois do jogo deles contra a Venezuela pelas eliminatórias. Então minha visita foi a um Centenário vazio. É um estádio antigo, de 86 anos. Mas bem conservadinho, honesto. Chama-se Centenário porque foi construído em 1930, 100 anos depois da Constituição uruguaia. Foi feito para a primeira Copa, e torço demais para que Argentina e Uruguai ganhem o direito de receber o Mundial de 2030.

Além de estar dentro de um lindo parque, em que é possível fazer piquenique, tem parquinho para crianças, etc, o Centenário tem um museu. O museu do futebol uruguaio. É incrível pensar que um país deste tamanho tenha sido a primeira potência do esporte e mantenha tanta força até hoje. O Uruguai ganhou a medalha de ouro nas Olimpíadas de 1924 e 28, sediou e conquistou o Mundial de 1930. Depois, claro, o maior dos feitos, o Maracanazo.

Museu no Centenário celebra Obdulio Varela e o Maracanazo

Museu no Centenário celebra Obdulio Varela e o Maracanazo

O museu celebra estes quatro títulos com relíquias e fotos. Tudo bem organizado e explicado. Imaginar que na década de 20 os caras foram de navio para as Olimpíadas, ambas na Europa. Há também um espaço especial para as tantas Copas Américas, com mais peso para as últimas três: 87, 95 (geração Francescoli) e 2011 (o ápice de Suárez, Forlán e cia), com gozações a Maradona e Messi.

É um museu pequeno, mas bacana. Merece a visita.

Em Colônia do Sacramento, uma linda cidadezinha de onde é possível ver Buenos Aires do outro lado do Plata, vi um pavilhão abandonado onde foi disputado um campeonato X de Pelota Basca na década de 70. Nunca achei que jogassem a Pelota fora do País Basco.

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Em Montevidéu, vi adolescentes aprendendo a jogar rúgbi no parque (foto acima). Uma escola gratuita. Num lindo fim de tarde, vi dezenas de pessoas correndo e pedalando. A cada poucos metros, nas três cidades que visitei, bem conservados equipamentos de ginástica, daqueles simples. E muita gente usando.

No bar Facal, que se denomina "um clássico de Montevidéu", tomei café da manhã sendo observado por Ghiggia.

Sabem aqueles livros de "1000 coisas para fazer antes de morrer"? Coloque um jogo de futebol no Uruguai na lista.

O café da manhã com o grande Ghiggia

O café da manhã com o grande Ghiggia

DICAS DE VIAGEM:

Dois cheiros são comuns no Uruguai: de churrasco e de maconha. As carnes são os pratos principais de todos os restaurantes e é difícil escolher uma ruim. Vegetariano? Terá dificuldades. Minha maneira de manter uma refeição bacana para a minha filha foi sempre pedir alguma salada como acompanhamento. Assim era possível destacar dali beterrabas, tomates, azeitonas, ovos, enfim. Senão fica só no carne com batata, carne com batata.

A maconha é legalizada no Uruguai e muita gente fuma, especialmente nos parques. No estádio do Nacional, então, nem se fala. Se você se incomoda com isso, sinto muito. Eu, que não vejo muita diferença para o cigarro, que aqui se fuma muito em parques e estádios de futebol, não dei a mínima.

Em Punta del Este:

– Os casinos me decepcionaram um pouco, mas talvez fosse a falta de gente. De um lado da península está o oceano, a praia Brava, com ondas. Do outro lado, o rio, a praia mansa. Nos dois casos, areia gostosa, fininha, ótima para ir com criança ou limpar depois com uma toalha (não é aquele grude-grude de muitas praias). O sol é forte e queima, não se deixe enganar pelo vento.

A praia mansa em Punta de Este

A praia mansa em Punta de Este

– Se estiver de carro, vale conhecer a ponte ondulada no caminho até La Barra. Ali pertinho está o parque Jaguel, um lugar um pouco surreal. É grande e tem ótimos brinquedos para crianças, mas está claro que não há manutenção, renovação. Do outro lado da cidade está a Casapueblo, em Punta Ballena. Vale conhecer e ver um por-do-sol. Lembra uma casa de Gaudí. Mas a visita não dá a verdadeira noção da construção, deve ser mais legal vê-la de longe.

– Gostei muito de dois restaurantes: o Artico é um fast food de frutos do mar, no porto, bem pertinho de onde ficam os pescadores e os lobos-marinhos (crianças adoram). Ótima comida, ótimo preço. Melhor custo benefício em uma cidade cara para comer. O Virazón é carinho, mas foi nosso restaurante predileto da viagem. Ótimo. E comer um churros do Manolo, no centrinho, faz parte. Nada demais, mas faz parte.

Em Colônia:

– Um pouquinho fora do centro tem uma praça de touros que nunca foi ativada, o tal pavilhão da pelota basca e um museu de trens (exagero chamar assim, mas enfim). Não vale muito a pena. O restaurante dentro de um vagão antigo tem seu charme, mas preços altos e atendimento bem mais ou menos.

– Em fins de semana, cidade fica cheia de argentinos, pois é muito perto de Buenos Aires. Então é bom reservar lugar em restaurantes. O centro é impossível de andar com carrinho de bebê, pois as ruas são de pedra. O Aquário é sem vergonha. É uma cidade simpática para um bate e volta, bonitinha. Tem um longo calçadão, casas lindas em frente ao Plata. Se der a sorte de pegar um dia limpo, o por-do-sol é lindo. Vale esperar. Passar uma noite é um bom programa.

O pôr-do-sol em Colônia do Sacramento

O pôr-do-sol em Colônia do Sacramento

Em Montevidéu:

– Visitar o Centenário é obrigação, e procurar um joguinho de futebol para ver no estádio, qualquer um, é uma bela experiência.

– Restaurantes Don Andrés e La Otra Parrilla são muito bons. Ambos afastados do centro, mas valem. Já o Mercado do Porto é aquele lugar bem turístico, com muita gente e preços altos. É uma cidade mais barata que as outras para fazer aquelas comprinhas básicas. Obrigação comprar um doce de leite e alguns alfajores da Lapataia. Fiz isso em supermercado mesmo, sempre a melhor opcão.

– Os parques, jardins e praças são todos bem cuidados. Há muitas praças com playground bacana pra crianças. Muitas. Uma sensação em Montevidéu e todo o país é a de segurança total e absoluta. Casas sem grades, pessoas nas ruas, ocupando espaços públicos.

O Uruguai é um país pequeno e que não parece fazer questão de ser grande. É um país que anda para frente, mas não parece fazer questão de correr e chegar na frente dos outros. É um país civilizado, seguro, limpo, culto, que não parece fazer questão de estar na reunião do G-20. É um país que nos mostra que é possível viver bem sem a obsessão de ser o melhor. Gosto deles. São legais, os uruguaios.

 

Sobre o Autor

Julio Gomes é jornalista esportivo desde que nasceu. Mas ganha para isso desde 1998, quando começou a carreira no UOL, onde foi editor de Esporte e trabalhou até 2003. Viveu por mais de 5 anos na Europa - a maior parte do tempo em Madrid, mas também em Londres, Paris e Lisboa. Neste período, estudou, foi correspondente da TV e Rádio Bandeirantes e comentarista do Canal+ espanhol, entre outras publicações europeias. Após a volta para a terrinha natal, foi editor-chefe de mídias digitais e comentarista da ESPN e também editor-chefe da BBC Brasil. Já cobriu cinco Copas do Mundo e, desde 2013, está de volta à primeira das casas.

Sobre o Blog

Este blog fala (muito) de futebol, mas também se aventura em outros esportes e gosta de divagar sobre a vida em nossa e outras sociedades.