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Julio Gomes

Não precisamos da medalha de Rafaela. Precisamos de milhões de Rafaelas

Julio Gomes

08/08/2016 19h35

"A gente não tem nada o que fazer na comunidade".

Pense nessa frase de Rafaela Silva. Medalha de ouro no judô, heroína nacional nos próximos anos.

Ele é da Cidade de Deus. Aquela mesmo do filme.

Pense agora na frase de Rafaela e no filme.

Pense agora na frase de Rafaela, no filme e nas remoções olímpicas promovidas pelas autoridades cariocas.

Pense agora na frase de Rafaela, no filme, nas remoções olímpicas e também no Congresso Nacional.

Pense bem.

E agora me diga que o crime é coisa de "gente ruim".

O crime é a consequência imediata, rápida e fácil, de uma sociedade pobre e da ausência do Estado. Não há oportunidades. Não há, como nos conta Rafaela, "o que fazer". E quem não tem o que fazer e cresce vendo sangue, tiro e porrada vai ser o quê da vida?

Na gigantesca maioria dos países pobres do mundo, é a religião que ocupa esse espaço. Não entrarei aqui em debates profundos sobre crime e religião. Terreno pantanoso.

Mas não tenho dúvidas de que o combo escola + esporte seja a grande solução para diminuir a violência e trazer sentido para a vida de muita gente.

Foi assim, com uma ação social do ex-medalhista olímpico Flávio Canto e seu técnico, Geraldo Bernardes, que surgiu o Instituto Reação. Uma escola de judô em comunidades carentes.

Já que o Estado nada faz, dependemos de ações assim para que as Rafaelas da vida saiam da rua e tenham o que fazer. Tenham um norte, uma razão de viver, aprendam a dar valor à vida.

O que seria de Rafaela, tida como uma menina "briguenta" na primeira infância, sem o judô?

Pense na frase. Pense no filme.

Difícil imaginar uma juventude suave em um jardim florido. Teria sido um convívio diário com a violência. Inclusive a policial, a violência de quem deveria proteger, mas trata quase todos, especialmente os jovens negros, como Rafaela, como bandidos nas comunidades pobres de todo o país.

Sem dinheiro. Sem escola. Sem ter o que fazer. Convivendo diariamente com a violência. Sendo atacado e humilhado de todos os lados. Ora bandidos, ora bandidos fardados.

Agrida uma criança de 3 anos e veja o que ela fará com o amiguinho na primeira "bola dividida". Grite e xingue uma criança e observe o que ela fará na segunda "bola dividida".

Amor traz amor. Violência gera violência. É básico. Mas está cheio de gente cega para esta simples equação.

Um país não vira rico e cheio de oportunidades de um dia para o outro.

Neste cenário, não há NADA melhor que o esporte.

Gastamos bilhões para estar no top 10 do quadro de medalhas. Gastamos bilhões para a Olimpíada vir até a nossa casa. São gastos supérfluos se não tivermos um plano. Uma política educacional consistente que insira o esporte, os vários esportes (não só o futebol). Políticas públicas que coloquem o esporte no centro de tudo.

Muitas crianças sairão dos Jogos loucos para jogar uma bola na cesta, dar uma raquetada, remar na lagoa, jogar com uma espada. Onde elas farão isso? Com quem? Quem vai ensinar?

O esporte ensina a ganhar, a perder, a respeitar, a competir, a conhecer o próprio corpo, a dividir espaço, a compartilhar emoções e responsabilidades, a lidar com frustrações, a cumprir tarefas em equipe, a esperar uma próxima vez. O esporte ensina tudo o que está em falta por aqui. O esporte faz as pessoas saudáveis, o que significaria menos gastos com saúde no futuro.

Esqueçam o alto rendimento por um minuto. Estou falando do básico do básico do básico.

Abram a mente quando falo o que falo no título deste post. É lógico que a medalha de ouro de Rafaela ajuda, nos faz sentir bem. Mas ela deveria ser a cereja do bolo, não o ponto de partida, como fingimos que essas medalhas são, Olimpíada após Olimpíada.

Não precisamos da medalha de ouro de Rafaela. O que precisamos é de milhões de Rafaelas.

Pensem na frase. Pensem no filme.

Pensem, pelo amor de Deus, em uma política pública de verdade centrada no esporte.

Chega da frase. Chega do filme.

rafaela_abraca

Sobre o Autor

Julio Gomes é jornalista esportivo desde que nasceu. Mas ganha para isso desde 1998, quando começou a carreira no UOL, onde foi editor de Esporte e trabalhou até 2003. Viveu por mais de 5 anos na Europa - a maior parte do tempo em Madrid, mas também em Londres, Paris e Lisboa. Neste período, estudou, foi correspondente da TV e Rádio Bandeirantes e comentarista do Canal+ espanhol, entre outras publicações europeias. Após a volta para a terrinha natal, foi editor-chefe de mídias digitais e comentarista da ESPN e também editor-chefe da BBC Brasil. Já cobriu cinco Copas do Mundo e, desde 2013, está de volta à primeira das casas.

Sobre o Blog

Este blog fala (muito) de futebol, mas também se aventura em outros esportes e gosta de divagar sobre a vida em nossa e outras sociedades.