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Julio Gomes

Não deu para o River. Ganhar Mundial hoje é preparo, vontade e muita sorte

Julio Gomes

20/12/2015 12h23

"São Paulo e Corinthians deram MUITA sorte. Liverpool em 2005 e Chelsea em 2012 ganharam a Champions por sorte, não eram nem top-5 da Europa".

Essa foi a "tuitada" que eu dei hoje em cedo, logo depois de dizer que "O Mundial virou uma coisa desnivelada demais nos últimos 15 anos. Os sul-americanos estão a anos-luz dos times europeus".

Escrevia isso conforme o Barcelona destroçava o River Plate, sem nenhuma margem para zebra.

Infelizmente, na tuitada da "sorte", pela limitação de caracteres, faltou dizer que São Paulo e Corinthians deram muita sorte "por enfrentar Liverpool e Chelsea". E não nas vitórias sobre ambos. Mas, claro, corações apaixonados leem o que querem. A tuitada deu polêmica. E muita! E agora, com mais espaço, vamos desenvolver o raciocínio.

O Mundial de Clubes é o ponto fraco do brasileiro. Esse é um torneio que precisa ser relativizado. Mas como relativizar quando se pensa com coração e fígado? Como relativizar quando temos uma sociedade paranóica em querer ser "a melhor do mundo", principalmente quando o tema é futebol?

O Mundial precisa ser relativizado por vários fatores.

Não necessariamente envolve os melhores de cada continente – há um mata-mata, com alto grau de imprevisibilidade, para definir Champions e Libertadores. Além disso, os times chegam, em regra, modificados em relação aos que ganharam o título continental. Às vezes mais fortes ainda, às vezes mais fracos, não raro com treinador diferente. A viagem, principalmente se for para o Japão, é longuíssima. E o nível de preparação varia demais.

Espanhóis, por exemplo, até dão certa importância. Capa de jornal, pelo menos. Ingleses não dão a menor pelota. Isso varia até mesmo dentro da Europa. E é dificílimo conseguir assistir ao jogo na Europa, a não ser que você esteja no país de um dos clubes envolvidos.

Hoje em dia, e cada vez mais, a preparação dita a história de um jogo de futebol. Programas de computador ajudam comissões técnicas que, se realizarem o trabalho de depuração com competência, passam tudo mastigadinho para jogadores. Vai marcar fulano? Analisa-se, com dados e estatísticas, a melhor maneira de combate os pontos fortes de fulano. Para onde corta, dribla, etc.

Times sul-americanos vivem, respiram o Mundial durante seis meses. Os europeus, por uma semana. Isso faz muita diferença. Aí é necessário colocar na mistura a vontade. E isso vai variar muito conforme a quantidade de jogadores sul-americanos atuando pelo time europeu em questão. Porque jogadores sul-americanos nascem e crescem ouvindo que o Mundial é a coisa mais importante que existe. Europeus, não.

E vontade, no futebol e em qualquer esporte ou profissão, conta muito. Quem quer mais amplia suas chances de vitória contra quem quer menos.

De 15 anos para cá, com a Lei Bosman e o livre mercado europeu consolidados, os clubes de lá viraram verdadeiras seleções. Enquanto os daqui, sujeitos a desmandos de federações corruptas e situação econômica instável em países emergentes (quando muito), foram ficando para trás. Criou-se um abismo.

Abismo que não existia quando Santos, Flamengo, Grêmio e São Paulo ganharam Mundiais lá atrás. Havia equilíbrio, havia, sim, duelos entre escolas. Naquele tempo, o Mundial era mesmo um tira-teima. O último sul-americano com nível mundial foi o Corinthians de 2000. De lá para cá, abriu-se o abismo.

Com verdadeiras seleções e se nada de significativo mudar, os times europeus vão perder "Mundiais" para os sul-americanos beeeeeem de vez em quando. E essa tendência já pode ser notada. De 1960 até o ano 2000, por quatro décadas, foram 22 títulos sul-americanos contra 18 europeus. Equilíbrio total. De 2001 até 2015, o placar está 11 a 4 para os europeus. Desequilíbrio.

Estou juntando Copa Intercontinental e Copa do Mundo de Clubes da Fifa, logicamente. Porque, salvo para mentes doentias, é a mesma coisa.

O River Plate, neste domingo, não teve qualquer chance contra o Barcelona. Em outros tempos, Messi, Neymar e Suárez, os três melhores jogadores sul-americanos da atualidade, talvez estivessem jogando pelo River (ou pelo menos um deles). Hoje, estão os três juntos. No time europeu.

Foi um passeio.

E é aí que está a questão. Não é apenas o fato de europeus estarem ganhando mais. É que os sul-americanos já entram em campo sem qualquer chance. Não é muito diferente, para o Barcelona, se impor contra o River Plate ou contra o Guangzhou Evergrande. Como não foi para o Real Madrid ano passado, Bayern de Munique no retrasado, etc.

Os times sul-americanos estão mais expostos a perder de algum africano ou asiático (Mazembe e Raja Casablanca que o digam) do que a ganhar de um europeu. O nível é mais próximo de quem está abaixo do que quem está acima.

O que pode fazer um sul-americano ganhar, então?

Um completo alinhamento de estrelas. Tudo tem que dar certo. E o legal do futebol é que, às vezes, dá.

Como eu já disse lá em cima, a preparação do sul-americano tem de ser muito mais bem feita, é necessário aproveitar o fato de conhecer o rival de baixo pra cima, de frente para trás, enquanto os do outro lado não têm o mesmo nível de conhecimento. A vontade de ganhar dos jogadores tem que ser maior – e é. Sul-americanos têm jogado em casa (20 mil argentinos para ver o River contra o Barça, 30 mil corintianos no Japão em 2012, etc).

E sorte, claro, conta muito em um duelo de partida única. Um goleiro inspirado, um impedimento mal marcado, um cartão vermelho, uma falha individual. Quanto menor o espaço para disputa, maior a chance de quem é pior.

Ajuda também enfrentar um europeu que não seja o melhor do momento.

E foi exatamente isso o que aconteceu com o São Paulo, em 2005, e o Corinthians, em 2012.

Os corintianos do Twitter ficaram menos exaltados do que os são-paulinos. Talvez por ser uma memória mais recente. O próprio Tite já disse que, tivesse o Corinthians enfrentado o Barcelona de Guardiola, muito dificilmente teria sido campeão no Japão.

O Chelsea estava longe de ser o melhor da Europa. Deu uma estrelada na Champions daquelas que fazem a gente amar o futebol. Na semifinal, contra o Barça, até Messi perdeu pênalti. Isso não é sorte? Da parte de Messi, não é azar, é incompetência. Da parte do Chelsea, é o quê? Quantos times tiveram a sorte de aproveitar um raríssimo momento de fraqueza de Messi? E na final, contra o Bayern? Achou um gol improvável de empate, depois ganhou nos pênaltis.

Não foi pouca sorte que o Chelsea teve para ser campeão europeu naquele ano. Foi muita. Mas MUITA. Claro que sorte, sem competência, coração, orgulho, etc, não leva ninguém a lugar algum. Mas ignorar os fatos subjetivos daqueles jogos é ignorar a própria essência apaixonante do futebol. Seis meses depois, quando foi enfrentar o Corinthians, o Chelsea já tinha outro técnico (Benítez, que coincidência) e havia sido eliminado na primeira fase da Champions League 2012-2013.

Isso está claro para qualquer pessoa que entenda de futebol. Que o Corinthians teve uma sorte danada de ter o Chelsea como rival no fim de ano. O que não tira, em nada, o mérito do título corintiano. As defesas de Cássio, o sistema tático montado por Tite, etc. Era um time inferior, mas que havia se preparado melhor, queria mais a vitória e enfrentou um rival ideal. As estrelas se alinharam.

Como se alinharam, ainda mais, para o São Paulo em 2005.

Porque hoje, com o futebol global, o abismo entre times europeus e sul-americanos diminuiu um pouquinho. No meio da década passada, estava no ápice.

O São Paulo deu uma sorte danada de enfrentar o Liverpool.

Aquela Champions 2004/2005 foi especial. O Barcelona de Ronaldinho já era um dos grandes times da Europa, foi eliminado de forma épica pelo Chelsea de Mourinho nas oitavas – o início da rivalidade Barça-Mou, que marcou a Europa nos anos seguintes. O Real Madrid galáctico de Luxemburgo ficou pelo caminho também.

Ao Liverpool, de Benítez, brilhou a estrela com gol espírita na semifinal contra o Chelsea. E depois, aquela final de Atenas, possivelmente a maior final europeia de todos os tempos. Um Milan 250 vezes superior já metia 3 a 0 no primeiro tempo. A superioridade era tanta, e tão rara em uma final europeia, que o Milan se deu o direito de achar que estava ganho no intervalo. E aí, carregado por sua linda torcida, o Liverpool foi buscar o empate e o título nos pênaltis.

Foi um dos títulos mais épicos e improváveis da história da Champions League – comparável ao do Chelsea em 2012, do Porto (Mourinho) em 2004 e da Inter (Mourinho de novo) em 2010.

Naquele ano, o Liverpool acabou em quinto o Campeonato Inglês, 37 pontos atrás do Chelsea. Teve uma polêmica na Europa, porque o campeão da Champions sempre joga o torneio seguinte. Mas ele também sempre é um time forte o suficiente para se classificar para a Champions seguinte via liga doméstica.

Pois aquele Liverpool não conseguiu a vaga via Premier League. Foi necessário aumentar o número de ingleses na Champions 05-06, e o Liverpool precisou passar pelas fases eliminatórias, jogando contra times de Gales, Lituânia e Bulgária. Caiu nas oitavas de final da Champions seguinte, para o Benfica.

E esse era o nível daquele Liverpool. Médio. Do nível do Benfica, inferior a 10 ou mais times europeus. Um time que ganhou a Champions porque as estrelas se alinharam e a energia de jogadores e torcida fez toda a diferença. Energia que times ingleses, especialmente os ingleses, não levam para o Mundial tão amado pelos sul-americanos.

Problema deles? Sim, problema deles. E problema do torneio também.

A sorte que o São Paulo teve foi de encarar um adversário que não era, nem de longe, o mais forte e interessado que podia enfrentar. E logo teve o jogo épico de Rogério Ceni, o bandeirinha acertando impedimentos milimétricos que acabariam em gols do Liverpool (outros times não têm essa "sorte" de acertos tão difíceis para a arbitragem). Enfim. Teve méritos, muitos méritos. E teve sorte, em boa dose.

Ninguém está aqui para tirar os méritos de São Paulo e Corinthians por aqueles Mundiais. Apenas para contextualizar.

O que aconteceu com o River Plate neste domingo ou com o Santos em 2011 é o normal de 15 anos para cá. Atropelamento sem dó. O que aconteceu em 2005 e 2012, e também em 2006 com o Inter, só é possível quando tudo conspira, tudo se alinha, é formada a tempestade perfeita.

E isso faz até ser mais bacana ver as esporádicas vitórias sul-americanas. Sempre é legal ver Davi derrubar Golias. O que não dá é para achar que essas vitórias eventuais simbolizam alguma coisa. Elas são pequenos milagres, nada muito além disso.

O Mundial deixou, faz tempo, de ser um duelo de escolas, um jogo aberto em que qualquer um poderia ganhar. Os sul-americanos ganharão de vez em quando. E, para isso, precisam de muita preparação, de muita vontade e, claro, de muita sorte.

Sobre o Autor

Julio Gomes é jornalista esportivo desde que nasceu. Mas ganha para isso desde 1998, quando começou a carreira no UOL, onde foi editor de Esporte e trabalhou até 2003. Viveu por mais de 5 anos na Europa - a maior parte do tempo em Madrid, mas também em Londres, Paris e Lisboa. Neste período, estudou, foi correspondente da TV e Rádio Bandeirantes e comentarista do Canal+ espanhol, entre outras publicações europeias. Após a volta para a terrinha natal, foi editor-chefe de mídias digitais e comentarista da ESPN e também editor-chefe da BBC Brasil. Já cobriu cinco Copas do Mundo e, desde 2013, está de volta à primeira das casas.

Sobre o Blog

Este blog fala (muito) de futebol, mas também se aventura em outros esportes e gosta de divagar sobre a vida em nossa e outras sociedades.