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Julio Gomes

Sobre o vôlei do Brasil, regulamentos, ética e mentiras

Julio Gomes

22/09/2015 18h52

A manchete na edição online da Folha e neste UOL vem com cinco anos de atraso: "Giba admite que entregou jogo em Mundial".

Me lembro bem deste dia. Eu era editor-chefe do site da ESPN. O jogo tinha sido uma daquelas entregadas clássicas, que, infelizmente, acontecem toda hora no esporte. Um time perde um jogo para ganhar um caminho teoricamente mais tranquilo (ou menos complicado) na competição. O regulamento daquele Mundial de vôlei na Itália era bizarro, e quanto mais bizarro for o regulamento de qualquer coisa, maiores as chances de coisas assim acontecerem.

Tem quem "entregue" poupando jogadores. Mas tem quem nem queira entregar, mas prefira guardar forças. E tem quem jogue para errar de fato. A entregada em sua essência. Foi como aquele jogo aconteceu. Sem disfarces.

Havia um debate na redação sobre como abordar o jogo quando ele acabasse. Noticiaríamos a "entregada" na manchete? Ou as vaias do público italiano? Não lembro o que fizemos, acho que a primeira opção.

O debate deveria ter acabado quando todos assistimos boquiabertos à entrevista do líbero Mário Jr, após a conquista do título, falando claramente em entregada na fase anterior.

Mas a partir daí o que se viu foi uma tremenda sequência de desmentidos e entrevistas na linha do "não é bem assim", "ele se expressou mal", etc. Aquela conversa para boi dormir.

Nesta segunda, em sabatina promovida pela Folha, Giba falou o que todos deveriam ter falado à época.

Eu nunca gostei da coisa de entregar jogo para pegar um caminho melhor em um campeonato.

A Espanha fez isso no basquete na Olimpíada de Londres (e foi duramente criticada por nossas bandas) para evitar um confronto com os Estados Unidos antes da final. O Brasil fez o mesmo no Mundial de vôlei de 2010.

Um time ou clube ou organização ou seleção até tem direito de pensar nos seus interesses. Mas a justiça da competição, a lisura com os outros competidores, isso vem na frente. Tem que vir na frente.

Entregar um jogo não muda apenas o próprio destino daquele time. Muda o de outros. E é aí, pra mim, que o bicho pega. O teu direito de pensar só em si acaba quando você afeta os outros. Isso se chama RESPEITO. Pela competição, pelos adversários, pelo público, por todos.

Aqui no Brasil fala-se muito em coisas assim: "tenho que me preocupar com o meu, os outros que se preocupem com o deles". E aquela velha frase: "se o regulamento permite…."

 

Tenho certeza que lerei comentários nessa linha aqui neste blog, no Facebook, etc. Afinal, fomos criados ouvindo isso na televisão. "Se o regulamento permite…"

 

Só que existe regra e existe ética. Algo pode ser permitido pela regra, mas ao mesmo tempo ser moralmente absurdo. E é aqui que se encaixam as "entregadas".

 

(Como também se encaixam aumentos abusivos de servidores públicos dados a si mesmos, entre outras coisas que não desobedecem leis nem regras nem regulamentos mas que são afrontas à ética.)

 

Essa é a minha opinião. E sei que muita gente discorda. Entregar um jogo pode até parecer necessário para que um objetivo seja atingido. Mas não consigo concordar com a lógica do "os fins justificam os meios", menos ainda com a lógica do "o que importa é vencer a qualquer custo".

 

É com essa lógica que muita gente sonega, rouba, passa pessoas para trás. Al Bundy, os mais velhos se lembrarão deste personagem de uma das melhores séries americanas já feitas ("Married with Children"), dizia: "it is only cheating when you get caught".

 

Só é trapaça se te pegarem.

 

Não é bem assim! O mundo será melhor quando a lógica de Al Bundy for desprezada, não exaltada, como vemos aqui no Brasil. Trapaça é trapaça. Quando te pegam ou não.

 

Argumentar que o regulamento era bizarro e era feito para beneficiar a Itália não é e nem nunca foi uma justificativa aceitável. Uma picaretagem não justifica a outra.

 

O ridículo de 2010 foi ainda maior por NEGAREM o que o mundo inteiro tinha visto. Aí você passa da discussão acima, sobre o que é ético ou não, e cai em outro buraco.

 

Aquele grupo, exceto o coitado do Mário Jr, ficará para a história como um grupo de mentirosos. Grandes jogadores de vôlei. Campeões do mundo. Antiéticos, para alguns. Guerreiros, para outros.

 

E mentirosos.

 

 

Sobre o Autor

Julio Gomes é jornalista esportivo desde que nasceu. Mas ganha para isso desde 1998, quando começou a carreira no UOL, onde foi editor de Esporte e trabalhou até 2003. Viveu por mais de 5 anos na Europa - a maior parte do tempo em Madrid, mas também em Londres, Paris e Lisboa. Neste período, estudou, foi correspondente da TV e Rádio Bandeirantes e comentarista do Canal+ espanhol, entre outras publicações europeias. Após a volta para a terrinha natal, foi editor-chefe de mídias digitais e comentarista da ESPN e também editor-chefe da BBC Brasil. Já cobriu cinco Copas do Mundo e, desde 2013, está de volta à primeira das casas.

Sobre o Blog

Este blog fala (muito) de futebol, mas também se aventura em outros esportes e gosta de divagar sobre a vida em nossa e outras sociedades.