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Julio Gomes

A semana em que o Corinthians goleou Pelé

Julio Gomes

14/09/2014 18h13

A semana em que o Corinthians goleou Pelé

Reza a lenda, que os que gostamos de futebol ouvimos desde crianças, que o Corinthians nunca ganhou de Pelé. Foram anos e anos e anos e anos de jogos entre Corinthians e Santos e, com o Rei em campo, não tinha jeito para o Coringão.

Esse post aqui mostra que não é bem assim. O tabuzão de 11 anos durou "só" no Paulistão. Mas isso é o de menos. A lenda está aí. Só dava Pelé.

A semana que passou foi histórica. Foi a semana em que o Corinthians deu de goleada em Pelé. Ai que bom seria se o ídolo máximo da história do esporte brasileiro falasse menos. Depois daquela acertada em cheio, milésimo gol feito, bola em mãos, o pedido por um olhar para as crianças do Brasil… Nossa. Só desastre.

Pelé criticou Aranha por ter parado o jogo e reclamado com o árbitro naquela infame noite de quarta-feira, quando era xingado de "macaco" na Arena Grêmio.

Dois dias depois, o Corinthians divulgou este lindo manifesto contra a homofobia.

Somos um país atrasado em muitos aspectos. Quem me lê há tempos sabe que, entre as razões, costumo colocar a falta de fronteiras, de intercâmbios, como a grande razão. Somos uma população (maioria absoluta) esmagada entre a floresta e o mar. Afastada até mesmo dos nossos vizinhos, que falam um idioma parecidíssimo com o nosso, mas que somos incapazes de aprender. Quem viaja para fora do país parece que faz questão de deixar na alfândega todo o conhecimento adquirido. Discursos religiosos pré-históricos se aproveitam de um déficit educacional latente.

Somos um atraso. Que fica claro quando vemos debates como os que vimos nas últimas semanas, desde o ocorrido na Arena Grêmio.

Ainda temos de ouvir Pelé falar o que falou. Pessoas inteligentes, estudadas e influentes argumentarem que "no campo de futebol vale tudo", que não existe racismo (ou qualquer outro ismo) porque tudo o que o torcedor quer dentro de um estádio é "extravasar, desestabilizar o adversário" e por aí vai.

Eu venho de um ambiente, não tenho culpa disso, em que o racismo velado, a homofobia não tão velada, o machismo e outros ismos e fobias estavam presentes. E foi só na Espanha, não com amigos espanhóis, mas ingleses e alemães, principalmente, que me toquei de uma coisa para a qual eu não dava bola.

Percebi o tamanho da importância que tem o que falamos, tão ou muito mais do que o que fazemos.

Ao contar piadas, ao xingar, ao fazer uma brincadeira, podemos não ter a menor intenção. Podemos realmente, no fundo da alma, não ter nada contra aquela minoria, aquela raça, aquele povo. Mas estamos automaticamente contribuindo com a eternização dos preconceitos. A piada será repetida por outros. A brincadeira fica incrustada no cérebro. O xingamento é ouvido por outro, sendo esse outro talvez seja teu filho, que o repetirá no futuro.

Eu sentia, em muitas pessoas com quem cruzei, que o racismo ainda estava lá. No fundo, no fundo, havia algo ali. Eles não são perfeitos, longe disso. Mas essas pessoas haviam sido educadas a não falar. A não brincar. E a dar esporro e lição de moral caso ouvissem. Eu não tenho a menor dúvida de que, em pouquíssimas gerações, talvez já a próxima de cada um daqueles futuros pais e mães, nem aquele pouquinho existirá.

O Brasil está vivendo agora um momento que outras sociedades já viveram. O da tentativa de tolerância zero. O de mudar, de um dia para o outro, o que se perpetuou por gerações. Estamos vivendo o momento de abrir os olhos de pessoas já formadas e vividas. O momento de ensinar que "atacar" o outro usando certas características é o mesmo que considerar tais características algo ruim, menor, pior. Portanto, perpetuá-las como algo ruim, menor, pior.

O momento de mostrar que não, não é normal chamar um negro de macaco. Não é normal chamar alguém de veado, nanico, manco, retardado ou o que seja. Não é normal xingar. Ponto.

Não é normal xingar e ofender.

"Ah, Julio, o mundo está ficando muito chato".

Esse argumento (dá para chamar de argumento?) é daqueles de quem não tem mais o que falar. Eu não tenho a menor dúvida que frases parecidas, com as adaptações de tempo e idioma, foram ditas quando os reis deixaram de fazer o que quisessem; quando os negros não puderam mais ser usados como escravos; quando mulheres passaram a votar e trabalhar; quando o casamento deixou de ser imposto pelas famílias. Que mundo chato!

O mundo pode até estar chato dentro de algumas cabecinhas. Já eu digo que o mundo está ficando mais justo. Mais limpo. Mais igual.

Eu acredito que o Brasil seja um país mais classista do que racista. Mas, como apontou a ONU, o racismo é, sim, institucionalizado aqui. Os dados mostram isso. O dia a dia da favela mostra isso.

A suspensão do Grêmio da Copa do Brasil é uma pena que poderia ser aplaudida pela sociedade brasileira. Porque ela é um símbolo. Estamos falando aqui de algo muito, mas muito mais importante do que o esporte. A "justiça" esportiva é o que menos importa. O que importa é a mensagem passada. Tenho amigos, fora do Brasil, estupefatos com o fato de o Grêmio ter recorrido da pena.

Que grande teria sido, por parte do clube, encaixar o golpe e entender que essa instituição tão relevante na sociedade gaúcha pode ser parte de um momento histórico de inversão do processo.

Que ruim é ouvir Pelé minimizar o ocorrido. Perpetuar o racismo invisível e institucionalizado. Implorar pelo "deixa pra lá".

É a cara do Brasil, a bem da verdade. O país do "deixa pra lá".

O Corinthians deu um passo importante ao ir além e, uma semana antes do jogo contra o São Paulo, que ficou com essa alcunha de "bambi", soltar o manifesto contra a homofobia e pedir para não haver o corinho de "biiicha" quando Rogério Ceni bater tiros de meta.

Tem uma dose de hipocrisia. Tem uma dose de não querer ser suspenso ou punido ou o que seja. Mas é preferível a hipocrisia do que a perpetuação de preconceitos históricos. É bem possível que muitos simplesmente façam o que o clube pede.

É sempre melhor um racista calado e envergonhado do que um não racista proferindo absurdos "inocentes" pelas ruas e estádios do Brasil. Com o primeiro, o racismo morre. Com o segundo, ele passa para frente.

Tenho certeza. Viverei para ver esse país dar dois passos à frente e passar da fase de debater se isso ou aquilo é ou não é homofobia, racismo, preconceito. Viverei para ver os "xingamentos" de macaco e veado serem tão bestas quanto seria, hoje, "xingar" alguém de médico, branco, cabeludo. Viverei para ver a palavra "macho" não ser mais usada como um adjetivo positivo, sinônimo de "corajoso".

Enquanto isso não acontece, fica apenas a constatação. O Corinthians goleou Pelé. E avançamos uma casa no tabuleiro da civilidade.

 

Sobre o Autor

Julio Gomes é jornalista esportivo desde que nasceu. Mas ganha para isso desde 1998, quando começou a carreira no UOL, onde foi editor de Esporte e trabalhou até 2003. Viveu por mais de 5 anos na Europa - a maior parte do tempo em Madrid, mas também em Londres, Paris e Lisboa. Neste período, estudou, foi correspondente da TV e Rádio Bandeirantes e comentarista do Canal+ espanhol, entre outras publicações europeias. Após a volta para a terrinha natal, foi editor-chefe de mídias digitais e comentarista da ESPN e também editor-chefe da BBC Brasil. Já cobriu cinco Copas do Mundo e, desde 2013, está de volta à primeira das casas.

Sobre o Blog

Este blog fala (muito) de futebol, mas também se aventura em outros esportes e gosta de divagar sobre a vida em nossa e outras sociedades.