Retorno de Dunga pouco importa em meio ao caos do futebol brasileiro
São muitos os dias em que muitas coisas sem importância viram o assunto do dia. É a chamada "falta de assunto", tão recorrente no jornalismo esportivo. Fala-se, fala-se e fala-se do que não tem relevância. Os dias 21 e 22 de julho foram raros. Porque foram aqueles dias em que muitas coisas com muita importância aconteceram. E várias delas, por isso mesmo, não tiveram a devida atenção.
Na segunda-feira, o grupo Bom Senso FC, aquele que não é recebido pela Confederação Brasileira de Futebol, foi ouvido novamente pela presidência da República. O Bom Senso é, hoje, a única "organização" com representantes do futebol que luta contra o sistema que devastou o esporte mais popular do país. É a única esperança de vermos o futebol brasileiro rumar na direção para onde ele precisa ir. É a primeira vez que pessoas com a visão correta se colocam em posição tão próxima de quem pode realmente interferir de alguma maneira (possivelmente com a aprovação de leis) no círculo vicioso que rege o esporte.
Pouco se falou do Bom Senso e as consequências da reunião com a presidente. Pouco se fala sobre a lei que os clubes querem passar, quase que uma espécie de anistia das dívidas contraídas ao longo das décadas. Pouco se fala sobre a possibilidade de tirar de agentes ou empresas terceiras e deixar só com os clubes os direitos econômicos de jogadores de futebol.
E pouco se falou da agressão covarde ao atleta André Santos por parte de aproximadamente 20 "torcedores" do Flamengo. Um rapaz que, bom ou não, grosso ou não, simpático ou não, mascarado ou não, transformou-se em vítima de um sistema que ajuda e dá cobertura a bandidos disfarçados de torcedores. E, para completar, teve o contrato rescindido pelo clube no mesmo dia em que, com pompa e circunstância, a CBF anunciava o novo treinador da seleção brasileira.
Vejam bem. Um jogador apanhou. Em circunstâncias já bastante curiosas, pois aconteceu na saída de um estádio de Copa do Mundo. E, depois de apanhar, foi despedido. Que mensagem o clube mais popular do Brasil pretende mandar?
No meio de tudo isso, Dunga.
Nada mais conveniente, não é verdade?
Não é interessante para muita gente que se fique debatendo Bom Senso, calendário, novas leis para o esporte e para as confederações, a formação de atletas com maior peso dos clubes e menor dos empresários, a responsabilidade de dirigentes, transparência financeira, cadastro biométrico para a entrada de torcedores nos estádios, a relação umbilical entre clubes e torcidas organizadas, estádios da Copa vazios uma semana depois da Copa, a bancada da bola no Congresso.
Nada como anunciar um novo técnico.
Falem de Dunga, falem de Dunga, falem de Dunga.
Falarei de Dunga, lógico. Tem lá sua importância. Mas é importante ressaltar que, neste momento, após o caos vivido pelo futebol brasileiro ter ficado evidenciado nos próprios gramados do país, a escolha do novo técnico da seleção principal seja, possivelmente, o assunto menos importante da semana.
Bom, talvez não menos importante do que os resultados do Campeonato Brasileiro. Mas, ainda assim, pouco importante perto de tudo o que citei acima.
A seleção brasileira é apenas a ponta do iceberg. O Brasil é um país de 200 milhões de habitantes em que existe a monocultura do esporte e onde problemas sociais empurram muitas crianças em direção ao esporte que pode salvá-las e suas famílias. Sempre, repito, sempre haverá matéria-prima. A metáfora do amigo Paulo Calçade é perfeita. Este é um enorme jardim em que, no meio de tanto mato, sempre brotará uma flor aqui, outra ali.
O "vaso" é o futebol europeu. E este sempre estará lá, de braços abertos, pagando relativamente pouco por diamantes brutos que podem, eventualmente, ser lapidados. Esta roda gira assim há pelo menos 20 anos. E seguirá girando da mesma maneira.
Com matéria-prima, história, camisa pesada e mentalidade vencedora, a seleção brasileira nunca deixará de estar entre as favoritas ou candidatas ao título. Não importa o técnico. O técnico pode ser a diferença entre ganhar uma Copa e perdê-la? Sim. Entre perder com dignidade e tomar de 7 a 1? Sim. Mas não é o técnico que vai revolucionar o futebol do nosso país. Ele pode, no máximo, revolucionar a seleção. Não o futebol. E não é ganhar ou perder a Copa que fará do Brasil dono do melhor ou pior futebol.
Já disse e repetirei quantas vezes for necessário. No futebol e na vida, precisamos ver as coisas menos pretas ou brancas. Relativizar resultados. Pensar mais nos meios, não apenas nos fins. Parar de achar que, se ganhou ou deu certo, tudo bem, se perdeu ou deu errado, que sejam buscados os culpados.
Os resultados anteriores à Copa do Mundo não fazem de Dunga um gênio. A derrota para a Holanda, em jogo equilibradíssimo, não faz dele uma anta.
Foi interessante ver Dunga entoar um "mea culpa" pelas relações duras com a imprensa. Mas também será tão importante assim que ele seja o rei da cordialidade com a imprensa? Não quero cair na armadilha de falar muito sobre algo que importa a tão poucos.
Pessoas como Dunga e Scolari têm dificuldades para entender que a imprensa não faz parte da seleção brasileira. Dunga disse hoje: "A imprensa tem que entender que o objetivo maior, a frente de todos nós, é a seleção brasileira".
Não, não, não, mil vezes não. A imprensa séria e que zela pela profissão coloca o trabalho e os compromissos com o leitor e a informação correta (e outras coisas, até) muito à frente da seleção. Eles não entendem que, às vezes, o compromisso com a profissão acabe sendo prejudicial à seleção. Sinto muito, mas às vezes é assim.
Vejamos. Uma situação absurda. Imaginem que o Thomas Muller tivesse sentido uma pancada no treino anterior à semifinal da Copa. E a única pessoa capaz de atendê-lo lá na Bahia fosse um médico brasileiro. O que deveria fazer o médico? Atendê-lo, fazer o máximo por ele e respeitar a própria profissão? Ou boicotar o tratamento em nome do "objetivo maior", a seleção brasileira?
Não seria absurdo pensar em um cenário em que o médico abandonaria o paciente "em nome da pátria amada"? Por que, então, alguns querem que jornalistas abandonem o compromisso com a profissão pelo simples fato de terem nascido no Brasil?
É este descompasso que gera atritos. Geram atritos também as críticas destrutivas e perguntas desrespeitosas feitas ao longo do ciclo de um treinador no comando da seleção. E aí alguns desses caras colocam todos no mesmo saco e passam a distribuir patadas para todos os lados. Quem não deveria ser atingido, é atingido. Se ofende. Vira guerra, enfim.
Foi o que virou no ciclo da Copa de 2010. E, apesar de Dunga prometer o contrário, tem toda a pinta qu acontecerá o mesmo no próximo ciclo. Porque, como ele mesmo disse, não mudará a própria essência. E a essência de Dunga tem certa truculência para com uma classe que ele despreza – e tem lá suas razões para isso. A maior parte da imprensa tampouco fará questão de tratar fatos e profissionais de forma menos rasa.
Mas e o futebol?
A seleção de Dunga jogava um futebol coerente o tempo todo. Preocupações defensivas, time compacto, linhas juntas, velocidade no contra ataque. Não, não tinha nada a ver com o futebol histórico do Brasil. Não é a escola brasileira de toda a vida. Mas era um jeito de jogar. E moderno, por sinal. Que explorava a velocidade e a capacidade de decisão dos jogadores de frente (Robinho, Kaká e Luis Fabiano). Mais ou menos o jeito que todos queriam para a partida contra a Alemanha, na semifinal.
Dunga erra ao dizer que "nenhuma seleção jogou de forma ofensiva na Copa". Leitura errada de um Mundial que mostrou priorização da posse da bola, técnica, velocidade e, sim, marcação lá na frente, adiantada. Mas acerta ao dizer que o coletivo precisa estar na frente das individualidades. Sem dúvida, é um dos paradigmas que precisam ser quebrados no modo brasileiro de ensinar e ver futebol.
Sim, o Brasil pode ser campeão do mundo com Dunga em 2018.
Mas e daí? O buraco do nosso futebol está muito mais… acima.
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