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Julio Gomes

Inexperiência e tática equivocada: o coquetel do vexame

Julio Gomes

09/07/2014 00h55

Foi em um dia 21 de junho de 2002, na cidade japonesa de Fukuroi, que escrevi:

"Após a expulsão de Ronaldinho, o Brasil começou a mostrar toda a sua experiência e malandragem. O time passou a tocar a bola de lado, cavar laterais, demorar nas cobranças de falta e até mesmo simular agressões. Como fez Rivaldo, caindo no chão com a mão no rosto após uma bola dividida pelo alto com o zagueiro Campbell."

Era a vitória do Brasil sobre a Inglaterra. Quartas de final da Copa que acabaria com o pentacampeonato. A seleção havia sofrido contra a Bélgica e havia virado o jogo contra a Inglaterra com genialidades de Ronaldinho e Rivaldo. Mas o Gaúcho acabaria expulso aos 12 minutos do segundo tempo. Me lembro como se fosse hoje: a meia hora final daquela partida não existiu. Simplesmente não teve jogo.

Era Felipão em estado puro. O Grêmio dele era assim, o Palmeiras dele era assim. Futebol apaixonante? Não. Mas futebol competitivo em que eram usados recursos que ficavam ali no limiar do ético/legal.

Contra a Colômbia, o mesmo deveria ter acontecido. Segundo tempo, 2 a 0, game over. Mas o game estava longe de estar over. O Brasil sofreu, sofreu muito para sair com a vitória, mesmo tendo uma espécie de carta branca do juiz para continuar parando a Colômbia constantemente com faltas táticas. Tática. Não só faltas são táticas, mas também ações e decisões.

O Brasil sofreu naquele jogo de Fortaleza porque tinha um verdadeiro buraco no meio de campo. A falta de experiência deste time de meninos impediu que eles conseguissem achar soluções ali mesmo, durante a partida. Soluções como um lateral cavado por Cafu naquele 21 de junho de 2002. Uma falta que demorasse a ser batida. Uma conversa de ajuste de posicionamento. Os colombianos fizeram um gol e, se achassem o segundo, teriam atropelado na prorrogação.

Ali, a seleção correu sério risco de ser eliminada. Um time "Felipão vintage" nunca teria corrido o mesmo risco.

A juventude explica. A inexperiência explica. Mas a tática também explica. E se tem uma coisa que me incomoda no futebol é a mania de simplificar as coisas. Faltou esse jogador. Foi aquele erro. Aquele pênalti. Aquele convocado. Não, não, senhoras e senhores. O futebol é um jogo bastante mais complexo que isso e é nossa mania de simplificar tudo que turva análises.

E se tivéssemos falado menos de Zuñiga e mais do tal buraco no meio de campo. E se tivéssemos falado menos do cartão a Thiago Silva e mais sobre como ele conseguia fazer dessa defesa um setor tão forte e coeso?

Falamos muito de besteira no futebol. E pouco do jogo. É por isso que não considero o Brasil o país do futebol, ainda que este seja um tema para um post futuro. Somos um país em que as pessoas gostam muito de jogar bola, mas não se preocupam nem um pouco com o jogo, as nuances do esporte, os fatores todos que vão além do drible e da qualidade técnica de um jogador. Somos um país que segue enxergando o futebol como um esporte de individualidades, quando ele é absurdamente coletivo.

Quem acompanha o esporte sabia que a Alemanha era muito, mas muito, mas muito, mas muito mais time que o Brasil. O que não impedia a chance de uma vitória brasileira, lógico. Esse é um esporte único por isso, o pior pode ganhar do melhor, pequenos acontecimentos de uma partida podem ter grandes consequências. Mas ela era improvável.

O que Luiz Felipe Scolari deveria ter feito, considerando que tinha um time jovem nas mãos e um oponente simplesmente melhor? Deveria ter sido o que sempre foi: pragmático e conservador.

E se Felipão tivesse "trancado a casinha" com vários volantes, tentado jogar por uma bola e tivesse perdido por 2 a 0? O que teria sido falado microfones afora? Eu digo para vocês. "Somos pentacampeões do mundo, não podemos jogar na retranca, tem que encarar qualquer um, a história do Brasil foi manchada"… etc etc etc etc etc.

Porque somos arrogantes no futebol. Mais até do que os americanos são com o basquete. Não aceitamos a superioridade alheia. O Brasil precisa perder por 7 a 1 para que as pessoas se deem conta de que o rival é superior (e ainda tem muita gente usando o argumento do "resultado atípico"). Se perdesse por 2 a 0 ou 3 a 1, teria sido por culpa do Neymar, do juiz, do Zuñiga, do vento, da trave, do sal grosso. Sempre encontra-se uma justificativa para a derrota. Ou melhor, 157 justificativas antes de se dizer que "bom, também tinha um adversário ali".

O outro nunca vence. É o Brasil que perde. É parte da nossa prepotência. Como me disse um amigo jornalista, em perfeita definição, se temos um "complexo de vira-lata" para quase tudo, no futebol vivemos o "complexo de pitbull".

É o complexo de pitbull que faz nossos torcedores acreditarem que o futebol daqui seja do mesmo nível (ou quase) das ligas europeias. Que alguém que arrebente aqui será automaticamente craque lá. O complexo de pitbull não aceitaria que jogássemos contra a Alemanha usando a mesma tática da Argélia.

Talvez por achar que poderia jogar com a Alemanha de igual para igual, ou talvez por não querer sofrer este tipo de crítica, Scolari errou. Com Bernard no lugar de Neymar, o sistema foi mantido. Aquele mesmo sistema do meio de campo com um mega buraco, dominado pela Croácia, pelo Chile e pela Colômbia. Em que Luiz Gustavo precisa cobrir as costas de Marcelo e deixa a posição.

Se há um time contra quem você não pode "entregar" o meio de campo, este é a Alemanha. Nesta situação, ela passa por cima como um rolo compressor, como passou. Ainda com 0 a 0, 10 minutos de jogo, eu tuitei o seguinte: "se continuar assim, vira 3 a 0. O Brasil precisa ficar menos escancarado em campo, urgentemente". A Alemanha nem tinha feito nada ainda. Apenas estava fácil de ver, no campo, o vão aberto no meio. Era uma questão de tempo para que Khedira, Schweinsteiger e Kroos começassem a se sentir cômodos e a encontrar os caminhos. E eles nem precisaram abrir o jogo, nem precisaram explorar as costas dos laterais! Foi tudo pelo meio. Tudo escandalosamente fácil.

A tática do Brasil era qual? Hulk para cima de Lahm e Bernard para cima de Howedes? Mas e daí, se você não tem a bola?

Como sabemos, meu tweet estava equivocado. Não virou 3 a 0. Já estava 5 a 0 com meia hora de jogo.

A Alemanha joga com uma defesa adiantada. A Argélia mostrou o caminho, mostrou como machucá-los. Transição rápida, velocidade dos atacantes e a esperança de chegar à bola antes de Neuer, o super goleiro-líbero. O Brasil tem jogadores melhores que os argelinos e tão rápidos quanto. Hulk, Bernard, Willian, Ramires, Oscar…

Fred não está na lista. Taticamente, não havia o menor sentido ter Fred em campo. Nem falo da parte técnica, falo de tática mesmo. De sistema. Fred nunca seria o jogador a romper os impedimentos e ganhar dos alemães na velocidade.

Então o Brasil, time jovem e inexperiente, com um volante que se deslocava para marcar o lateral, deixava o outro só. Os "meias" Hulk e Bernard estavam abertos. Só Oscar poderia ajudar Fernandinho. E o líder do sistema defensivo não estava em campo. Contra a seleção que melhor sabe, no mundo, como controlar o jogo e encontrar espaços.

Pagou-se o preço de um erro tático banal e assim foi construída a goleada. O normal era o Brasil perder da Alemanha. O anormal foi perder de 7. O normal era o Brasil ter tentado se defender e apostado em uma bola, um cruzamento, um gol de falta. O anormal foi ter achado que tinha qualidade suficiente para encarar a Alemanha.

O Felipão de 2002 talvez tivesse sido mais pragmático na convocação e, certamente, na leitura do jogo do Mineirão. Em 2014, as necessidades são outras. O futebol mudou. Ele é só mais um no mundo autossuficiente do nosso futebol, em que vivemos de passado e não buscamos atualizações e intercâmbio. Afinal, somos pentacampeões.

Sim, somos pentacampeões. Mas a seleção brasileira sofreu uma humilhação que nenhuma outra de seu quilate, e são poucas, já sofreu um dia. É melhor olhar para frente. Porque olhar para trás já não está mais resolvendo as coisas.

Sobre o Autor

Julio Gomes é jornalista esportivo desde que nasceu. Mas ganha para isso desde 1998, quando começou a carreira no UOL, onde foi editor de Esporte e trabalhou até 2003. Viveu por mais de 5 anos na Europa - a maior parte do tempo em Madrid, mas também em Londres, Paris e Lisboa. Neste período, estudou, foi correspondente da TV e Rádio Bandeirantes e comentarista do Canal+ espanhol, entre outras publicações europeias. Após a volta para a terrinha natal, foi editor-chefe de mídias digitais e comentarista da ESPN e também editor-chefe da BBC Brasil. Já cobriu cinco Copas do Mundo e, desde 2013, está de volta à primeira das casas.

Sobre o Blog

Este blog fala (muito) de futebol, mas também se aventura em outros esportes e gosta de divagar sobre a vida em nossa e outras sociedades.