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Julio Gomes

Excursões no exterior: só se conhece o abismo caindo e subindo

Julio Gomes

02/08/2013 22h51

A seleção brasileira não é o futebol brasileiro. Digo isso já de cara para responder aos muitos que escreverão "é, mas o Brasil deu um pau na Espanha na Copa das Confederações, o que mostra que somos melhores que os europeus".

O Brasil é um país em que vários fenômenos sociais e históricos juntos resultam em uma boa produção de talentos para o futebol. O mesmo acontece nos Estados Unidos com o basquete, mas lá a liga é a melhor do mundo, a seleção é a melhor do mundo, o esporte é tratado como deve ser. Então, eles mantêm uma superioridade que nenhum outro país tem em qualquer esporte coletivo de relevância mundial.

Nós poderíamos ser, para o futebol, o mesmo que os EUA são para o basquete. Mas a gestão do esporte é nula. Em termos lúdicos, as instituições governamentais não fazem nada. No nível profissional, há de tudo, menos profissionalismo. O futebol de base do Brasil não existe, não funciona, ou melhor, funciona da maneira errada. A culpa disso é da CBF e também dos clubes. A CBF, que apenas tem olhos para a seleção principal e não faz sua função principal, de ajudar o esporte a evoluir. E os clubes, com suas gestões amadoras, sem métodos, sem funções educacionais, sem planejamento a longo prazo, sem nada.

O Brasil foi o que os Estados Unidos foram nos anos 50 e 60. Depois disso, sentou na arrogância. O complexo de vira-lata, tão falado, virou o complexo do poodle-cheirosinho-tosado-da-madame. O brasileiro virou um povo que não admite a possibilidade de haver mais gente do mundo que jogue bola tão bem quanto. Ou melhor. Nos consideramos os piores do mundo em tudo. No futebol, toda essa frustração é canalizada para o outro lado da moeda: aqui, somos os melhores e que ninguém ouse duvidar disso.

Quando a discussão fica difícil, é só apelar para o velho e bom "somos pentacampeões".

Desde que acabou a superioridade real e verdadeira, a televisão mostrou o futebol, esse esporte apaixonante, para o mundo, e tudo foi se globalizando, o Brasil ganhou duas Copas. A Argentina também. A Alemanha também. A Itália também. Todas elas, além da Holanda, chegaram nas mesmas três finais. Calma lá com os resultados em Copa. E olho, porque a Copa foi, um dia, a competição que reunia os melhores do mundo no mesmo lugar, era a única maneira possível de confrontar escolas.

Com a abertura do mercado europeu, a lei Bosman e a globalização, a Uefa Champions League passou a ser um torneio que reúne todos os jogadores relevantes de uma Copa do Mundo e mais alguns. Nos últimos 15 anos, com a grande revolução pela qual o futebol passou, os clubes viraram melhores do que as seleções nacionais. A Espanha não é o Barcelona sem Messi? Pois é. É o Barcelona sem Messi.

A seleção brasileira é uma exceção. E ela foi muito beneficiada por esse movimento todo que passou no futebol mundial. Por razões, como eu disse, sociais, históricas e sociológicas, o talento continua brotando, com uma flor aqui, outra ali em um grande matagal. Esses caras que surgem vão jogar em alto nível na Europa e aprendem o que não aprenderam aqui quando deveriam, como se fosse uma espécie de universidade. Evoluem na profissão. Têm contato com treinadores de diferentes países, árbitros, companheiros, rivais. É o tal intercâmbio, que é útil em qualquer área. E aí esses caras formam a seleção brasileira, com toda essa bagagem. As seleções do Brasil serão sempre fortes enquanto essa lógica continuar.

Vejam que interessante. Dos 11 titulares de Scolari na Copa das Confederações, 5 não jogaram ou passaram muito rapidamente pelo futebol profissional daqui. Foram, essencialmente, formados na Europa.

O fenômeno que ajuda a seleção não acontece nos clubes, muito pelo contrário. O futebol daqui é fechado para o intercâmbio, os métodos de ensino na base são os mesmos de décadas atrás. Vivemos agindo de forma empírica e resultadista em um meio em que estudos, métodos e teoria se tornaram mais e mais importantes.

O Campeonato Brasileiro é um campeonato ruim tecnicamente e medieval taticamente. Sim, vemos coisas interessantes aqui e ali, com alguns treinadores que reconheceram o déficit e foram buscar conhecimento, como Tite. Em regra, ganha o campeonato quem consegue armar um bom sistema defensivo. Afinal, em terra de cego, quem tem olho é rei.

O Santos, com seu time de jovens promessas, faz um campeonato bastante digno e deverá passar longe do rebaixamento. Levou de 8 de um Barcelona fazendo seu primeiro jogo depois das férias. As férias poderiam ter levado 5 meses, e o Barça jogaria da mesma maneira, porque ali tem método, estudo, conhecimento profundo sobre o jogo. Não é só um monte de caras jogando bola.

O São Paulo, com seu elenco caro, vai voltar da viagem na lanterna do Brasileirão. Mas não se enganem, não tem a menor chance de ser rebaixado. Não fosse um clube em ebulição política, estaria lá em cima, buscando vaga na Libertadores. É dos elencos mais completos do país. Levou 2 do Bayern de Munique, mas poderia ter levado também de 8, dada a sova que foi a partida. Não levou o mesmo pau que o Santos porque se defendeu melhor, talvez resultado de ter um técnico, um dos poucos, que saiu do país, conheceu formas diferentes de jogar, tem a mente aberta para fazer o que é necessário, não o que povo e dirigente querem.

O Santos, tomando a surra que estava tomando, defendia com 7 jogadores, enquanto os outros 3 assistiam lá na frente. Não perdeu de 15 porque o Barcelona tirou o pé. O Atlético Mineiro fez o mesmo na Libertadores toda, se defendendo com 6 jogadores, e por isso quase perdeu o torneio em diversos momentos. Time brasileiro, em regra, não sabe defender – o Corinthians atual é a exceção.

São Paulo e Santos certamente não fizeram nada para melhorar suas imagens internacionalmente. Mas, apesar das atuações tristes, partidas e excursões como estas podem ser muito úteis para muita gente. É o preparador físico que fica de olho no trabalho do outro time antes do jogo. É o jogador que percebe uma maneira diferente de marcação. É um técnico que vê ao vivo uma linha de impedimento que pode ser aplicada por aqui. É uma nutricionista que troca ideias com a colega sobre um determinado suplemento.

Intercâmbio. Intercâmbio. Intercâmbio.

Se hoje fosse disputado um mega Mundial de pontos corridos, com os 20 melhores times europeus contra os 20 times do Brasileirão, eu não tenho a menor dúvida de que não teríamos nenhuma equipe nacional entre as 10 primeiras. Possivelmente 2 ou 3 entre as 20 primeiras, no máximo. No segundo ano, isso mudaria. No terceiro, mudaria um pouco mais. O aprendizado iria gerar evolução técnica, tática, física e de resultados.

A postura de Santos e São Paulo foi a mesma que qualquer outro clube brasileiro teria diante das duas equipes mais fortes da Europa nos últimos 5, 6 anos. É um abismo. Nossos clubes, hoje, são Taitis. Isso mesmo.

Como o tal torneião de pontos corridos entre brasileiros e europeus nunca vai acontecer, excursões como estas deveriam ser mais frequentes. É a chance de absorver conhecimento e amadurecer. Podem ser traumáticas no início, mas teriam grande valia no médio-longo prazo. Quando o futebol brasileiro entender que somos o terceiro mundo da bola na esfera de clubes, descer do pedestal e tomar um chá de humildade, teremos dado um passo gigantesco para voltarmos a sermos os melhores.

Com conhecimento. Não com gogó.

 

Sobre o Autor

Julio Gomes é jornalista esportivo desde que nasceu. Mas ganha para isso desde 1998, quando começou a carreira no UOL, onde foi editor de Esporte e trabalhou até 2003. Viveu por mais de 5 anos na Europa - a maior parte do tempo em Madrid, mas também em Londres, Paris e Lisboa. Neste período, estudou, foi correspondente da TV e Rádio Bandeirantes e comentarista do Canal+ espanhol, entre outras publicações europeias. Após a volta para a terrinha natal, foi editor-chefe de mídias digitais e comentarista da ESPN e também editor-chefe da BBC Brasil. Já cobriu cinco Copas do Mundo e, desde 2013, está de volta à primeira das casas.

Sobre o Blog

Este blog fala (muito) de futebol, mas também se aventura em outros esportes e gosta de divagar sobre a vida em nossa e outras sociedades.