Topo

Julio Gomes

Êxodo espanhol evidencia abismo e é exemplo para o Brasil

Julio Gomes

07/07/2013 12h01

"Há muitos jogadores espanhóis pedindo a gritos jogar na Premier League."

A frase é emblemática, diz quase tudo. É de Francis Cagigao, espanhol, um dos treinadores do Arsenal – técnicos espanhóis, por sinal, estão sendo exportados para os quatro cantos do mundo, um movimento intensificado nos últimos cinco anos e que vem fechando portas para brasileiros até mesmo nos mercados mais afastados ("mundo árabe", etc) e também no futsal. Mas essa é outra história.

Cagigao, em entrevista ao "El País", ilustra um momento em que o mercado está complicado demais para os jogadores espanhóis dentro da própria Espanha. A dura crise económica que o país vive há cinco anos tem a ver com isso? Sim. Mas a principal causa é outra. É a distribuição absurda do dinheiro da televisão entre os clubes, que acaba com a competição e, consequentemente, a motivação. Vamos colocar em contexto.

O Real Madrid sempre foi e sempre será o clube mais rico do país. É o maior campeão e nunca deixou de disputar o título, nos bons ou maus momentos. O Barcelona ganhou status parecido nos últimos 30 anos – muita gente não sabe, mas o Barça era menor que o Atlético de Madri e tinha o mesmo tamanho do Athletic Bilbao, por exemplo, até a chegada de Cruyff e a revolução do futebol do clube a partir dos anos 70. Real e Barça sempre foram fortes e sempre serão. Mas essa ideia de que só os dois ganham e que o Espanhol é um grande "Gauchão", um campeonato de dois times, serve somente para os últimos quatro anos. Justamente, os anos de crise e da distribuição de dinheiro. Anos de recordes, em que nunca na história a superioridade dos dois gigantes foi tão latente.

Vejam o que aconteceu nos últimos quatro anos:
12/13 – Barça campeão com 100 pontos
11/12 – Real campeão com 100 pontos
10/11 – Barça campeão com 96 pontos, Real com 92
09/10 – Barça campeão com 99 pontos, Real com 96

Em 2010, Manuel Pellegrini foi demitido após os 96 pontos do Real. Nunca um time havia sido campeão com 96 pontos na história antes daquela temporada. Foi um recorde sem título, porque o Barça de Guardiola fez 99. Foi o primeiro dos quatro anos em que o campeonato praticamente "acabou". A partir dali, todos sabiam que não haveria milagre que tirasse o título de um dos dois gigantes.

Os anos anteriores mostram, claro, um domínio de um de outro. Mas percebam a quantidade de pontos, que não é tão brutal. E percebam que nem sempre foram os dois gigantes os dois primeiros colocados:

08/09 – Barcelona campeão com 87 pontos, Real vice com 78
07/08 – Real campeão com 85 pontos, Villarreal vice-campeão
06/07 – Real campeão com os mesmos 76 pontos do Barça, Sevilla com 71
05/06 – Barça campeão com 82, Real com 70, Valencia com 69, Osasuna e Sevilla, 68
04/05 – Barça campeão com 84 pontos, Real com 80
03/04 – Valencia campeão com 77 pontos, Barça 72, La Coruña 71, Real 70
02/03 – Real campeão com 78 pontos, Real Sociedad 76, Barça em sexto lugar
01/02 – Valencia campeão com 75 pontos, La Coruña com 68, Real 66, Barça 64
00/01 – Real campeão com 80 pontos, La Coruña vice com 73

Em 2008, cinco anos atrás, o Villarreal era vice-campeão, à frente do Barcelona de Ronaldinho. Em 2007, o Sevilla disputou o título com os dois gigantes até a antepenúltima rodada. Em 2006, o Real Madrid suou para se garantir na Champions League, entre os quatro primeiros. O Valencia foi campeão em 2002 e 2004, e, em 2003, o Real só ficou com o título por um tropeço da Real Sociedad na penúltima rodada. Ou seja, não faz tanto tempo atrás, há menos de dez anos, o domínio dos dois gigantes não existia da maneira que vemos hoje. Havia campeonato, enfim.

O grande problema do futebol espanhol é que a Liga permite que os clubes negociem os direitos de TV separadamente. Qual o efeito prático disso? Hoje, Barcelona e Real Madrid ficam com 54% do total do dinheiro da TV para eles. Até 2010, eram 13 vezes mais do que o clube que menos recebia, hoje essa diferença está ainda maior. Na Alemanha, quem recebe mais dinheiro da TV ganha o dobro do que menos recebe. Na Inglaterra, chega a cinco vezes mais.

O Espanhol virou um "Gauchão" porque Real e Barça, na luta cabeça a cabeça entre eles e pelo domínio europeu, esqueceram-se de que há outros 18 clubes na liga. E que, para o produto, é péssima a (real) sensação de que ninguém, além deles, tem chances de ser campeão. Os outros clubes do país não conseguem segurar bons jogadores espanhóis, e os bons jogadores espanhóis não querem ficar em uma liga onde não há por que jogar, em que ser o terceiro lugar é o "título".

No meio de 2010, David Silva deixou o Valencia para jogar no Manchester City. Em 2011, já foram três espanhóis de partida para a Premier, incluindo Mata, do Valencia ao Chelsea. Em 2012, o número de jogadores da Espanha contratados por times ingleses subiu para sete. Para a próxima temporada, já são nove no momento em que escrevo esse post – incluindo Jesús Navas, da seleção espanhola, do Sevilla para o City. Negredo, artilheiro do Sevilla, e Higuaín, do Real Madrid, estão a ponto de fechar com clubes da Premier.

A Liga Espanhola já não é a segunda do mundo em receitas, perdeu espaço para a Bundesliga. E, à parte os jogos de Real e Barça, há pouco interesse por outras partidas do campeonato. Percebendo isso, o poder público agiu, uma nova "Lei do Esporte" entrou em ação e, a partir de 2015, os clubes da primeira e segunda divisão serão obrigados a vender os direitos de TV conjuntamente. O presidente do Sevilla, José María del Nido, o maior crítico à divisão do dinheiro da TV, ameaça colocar o time juvenil em campo contra Real e Barça.

Curiosamente, no Brasil vivemos processo contrário. Até dois anos atrás, o Clube dos 13 negociava os direitos de TV e havia um certo equilíbrio na distribuição entre os clubes. Desde a implosão do Clube dos 13, os clubes passaram a negociar diretamente com a TV Globo. O dinheiro aumentou, assim como as diferenças. Hoje, o São Paulo pode mandar técnicos embora à vontade. O dinheiro é tanto que nunca o clube deixará de estar na disputa, pelo menos, da Libertadores. O Coritiba pode fazer tudo certinho e até liderar no início, mas o dinheiro dos outros é tanto que ele nunca estará na disputa pela Libertadores.

O Brasileirão está dividido em dois grupos: os 11 "grandes" de Rio, SP, RS e MG que disputam título, Libertadores e muito, muito dificilmente serão obrigados a lutar contra o rebaixamento – ainda pode acontecer, porque os efeitos da divisão absurda de dinheiro não são imediatos e algumas gestões são tão ruins (vide Palmeiras) que levam um clube ao caos. No outro grupo, estão 9 clubes que entram no campeonato sabedores da completa inexistência de chances de disputar o título.

E isso porque estou sendo "bonzinho". Todos sabemos que não são os 11 "grandes" do mesmo tamanho. Cada vez mais times entram no Brasileirão do mesmo jeito que os outros 18 clubes da Espanha: sem chances de ganhar.

A absurda diferença de dinheiro entre os clubes não é assunto na grande mídia. Se está bom para Corinthians, Flamengo, São Paulo, está bom para a maioria, não é verdade? Só não está bom para o campeonato… logo logo veremos o Brasileirão também virar um grande Estadual. Mas ainda há tempo para mudar.

Barcelona e Real olham apenas para o próprio umbigo, e intervenções são necessárias para que a liga deixe de ser a porcaria em que está se transformando. Aqui no Brasil, cada clube, cada torcedor, atua da mesma forma. Olhando para os próprios interesses, não os coletivos. Se essa lógica perversa não mudar, viveremos na mentira do campeonato mais equilibrado do mundo – aquele que há dez anos só é vencido por clubes do Rio e de São Paulo.

 

Sobre o Autor

Julio Gomes é jornalista esportivo desde que nasceu. Mas ganha para isso desde 1998, quando começou a carreira no UOL, onde foi editor de Esporte e trabalhou até 2003. Viveu por mais de 5 anos na Europa - a maior parte do tempo em Madrid, mas também em Londres, Paris e Lisboa. Neste período, estudou, foi correspondente da TV e Rádio Bandeirantes e comentarista do Canal+ espanhol, entre outras publicações europeias. Após a volta para a terrinha natal, foi editor-chefe de mídias digitais e comentarista da ESPN e também editor-chefe da BBC Brasil. Já cobriu cinco Copas do Mundo e, desde 2013, está de volta à primeira das casas.

Sobre o Blog

Este blog fala (muito) de futebol, mas também se aventura em outros esportes e gosta de divagar sobre a vida em nossa e outras sociedades.